Trechos de histórias


Toni



Mês passado eu fiz sete anos. Quando eu tinha cinco anos, papai e mamãe separaram-se. Mamãe e eu mudamos pra chácara da vovó. (...) Mamãe adoeceu por causa da separação. Ela foi internada e ficou muito tempo no hospital. Eu visitei ela uma vez. (...) Eu espiava em todas as camas pra reconhecer mamãe. Não via as caras dos doentes por causa da altura das camas. Eu tinha seis anos, ainda não era grande. Muitos doentes se cobriam com lençol listrado de branco e azul. Vovó segurou o meu ombro, me empurrou, fez sinal de silêncio com o dedo na boca, igual à enfermeira no cartaz da entrada. (...) Vovó tem rugas e manchas no rosto e nas mãos. As rugas e as manchas do rosto e das mãos da vovó apareceram porque ela tomava sol trabalhando na chácara, sem usar nem chapéu nem filtro solar. Na época dela não existia filtro solar. Eu não me lembro porque eu era pequeno, eu acho que eu nem tinha nascido. Papai e mamãe moravam na cidade quando eu nasci. A gente visitava vovó no final de semana. Era na época que papai e mamãe ainda estavam juntos. Mamãe passava filtro solar em mim. Por isso minha pele não vai manchar e enrugar igual a da vovó quando eu ficar velho. (...) Eu senti vontade de fazer xixi. Segurei a bexiga, senão vovó brigava comigo. A vontade de fazer xixi não acabava. Vovó limpou o copo com guardanapo. Deixou eu beber um pouco de água. Ao invés de melhorar, a vontade de fazer xixi piorou. Minha barriga começou a doer. Eu não aguentava mais, eu ia fazer xixi na calça. Vovó Cina me mandou segurar a vontade. Falou que não existia banheiro no hospital. Perguntei como os doentes faziam as necessidades. Ela me mandou calar a boca. Então ela mandou eu perguntar pra enfermeira onde era o banheiro. Eu não vi nenhuma enfermeira. A doente acordada na cama ao lado da cama da mamãe me mostrou onde era o banheiro. Vovó disse pra eu não encostar em nada, pra lavar as mãos depois de fazer xixi. Quase não deu tempo, mas eu consegui. Eu encostei na torneira pra lavar as mãos. Eu voltei correndo. Vovó brigou comigo por que a correria perturbava os doentes. (...) Todo mundo me chama de Toni, mas o meu nome verdadeiro é Antônio. É o mesmo nome do papai. Também era o nome do meu avô que morreu. Eu não gosto muito do nome Antônio, eu gosto mais de Toni. Vovó diz que Toni não é nome de gente. Nem é nome de bicho, eu acho. Na chácara da vovó Cina não tem bicho chamado Toni a não ser eu, mas eu não sou bicho. Na chácara tem uma vaca chamada Pintada. A vaca Pintada tem dois filhos. Um é o boi pequeno chamado Marrão, o outro é um bezerro novinho que ainda não tem nome. A vaca Pintada dá muito leite. O boi pequeno chamado Marrão parou de mamar faz tempo. O bezerro novo sem nome mama pouco, Pedro tira quase todo o leite da mãe dele. O bezerro novinho berra de fome no curral. Eu tenho pena dele. Na chácara tem também os gatos chamados Mimi e Chaninho, eu quase não vejo eles, eles vivem em cima do telhado. Eu não gosto de gato. Os gatos unham a gente. Vovó Cina gosta de gato. Os gatos são úteis, caçam os ratos no paiol. Tinha uma cadela pequena chamada Bilu. Ela morreu mordida de cobra. Pedro tem uma cadela perdigueira branca pintada de marrom chamada Diana. Tinha um papagaio chamado Louro. Ele era todo verde, os olhos eram vermelhos. Um dia Pedro se esqueceu de por o Louro pra dentro. De noite a coruja pegou, deixou só as penas. Tem as galinhas, o casal de patos e o peru, mas eles não têm nome. Têm também tatu, gambá, periquitos, pombos verdadeiros, pássaros pretos. Pedro disse que tem até seriema. Eu nunca vi. Nem tatu, nem gambá nem seriema. São bichos do mato, eles não entendem a gente. Tem também um cavalo branco chamado Silver. É o nome mais parecido com o meu. Silver parece com o meu sobrenome. Papai me ensinou que Silver significa prata em inglês. O cavalo Silver é branco. Por isso o nome dele é Silver. Eu acho errado. A cor prata é parecida com a cor branca, mas não é branco, é prateado. Eu aprendi como se fala branco em inglês, mas esqueci. (...) Mamãe sorriu. Não sei se ela reconheceu a gente. Os lábios dela estavam cheios de casquinhas brancas. Vovó perguntou se ela estava com sede. Vovó me colocou de novo no chão pra dar água pra ela. Eu sou pesado. Vovó não pode carregar peso. Ela tem problema de coluna. Mamãe levantou a mão, ia passar a mão na minha cabeça, o braço dela tombou. Estava pesado por causa dos curativos ou era fraqueza. Eu cheguei mais perto. Eu segurei a vontade de chorar. Eu não podia chorar na frente da mamãe. A tristeza dela piorava e a alta demorava mais. As pessoas doentes de depressão tomam remédio pra dormir. A cura pode demorar anos. Às vezes não cura nunca. Eu segurei nos dedos dela. Ela dormiu de novo. Eu soltei a mão dela. A gente esperou ela acordar. Não acordou. Vovó despediu-se da doente idosa e a gente foi embora. (...) Vou pular de contar uma parte que demorou bastante a passar e aconteceu pouca coisa. Mamãe saiu do hospital e papai foi transferido pra trabalhar mais perto da gente. Ele me pegava no primeiro final de semana de cada mês. Ele vinha no sábado de manhã. De carro novo. Vovó arrumava minha mochila. Mamãe não saía do quarto. Ela chorava na hora de se despedir. Papai esperava no carro. Eu esperava mamãe parar de chorar e de me abraçar. Demorava. Papai me trazia mais cedo no domingo porque na chácara a gente dormia antes das dez da noite. (...) Papai comprou o videogame. Instalou na sala de televisão. Eu só sabia jogar um jogo. Hugo me ensinou os outros. Hugo é um amigo do papai. (...) Papai nunca briga comigo. Ele só não gosta quando eu entro no quarto dele sem bater na porta. Eu já vi várias vezes Hugo deitado na cama. Um dia eu perguntei por que Hugo entrava no quarto sem bater e deitava na cama. Porque papai dormia em cama de casal se não era mais casado. Ele respondeu que dormia na cama de casal porque gostava de espaço. Que Hugo podia ficar lá porque era adulto. Quando eu crescesse, ele me explicava melhor. Esperei ele dizer mais alguma coisa, papai gosta de explicar tudo, mas ele não explicou mais nada. (...) No outro dia papai deixou eu e Hugo no shopping. Combinou lanchar com a gente mais tarde. Não dava tempo de ver um filme. A gente olhou as vitrines das lojas de roupa. Hugo gostava. Hugo comprou dois sacos de batatas fritas, um pra ele outro pra mim. A gente foi na Divertilândia. Tinha fila em todos os brinquedos. A gente não foi em nenhum. Estava na hora de encontrar papai na praça de alimentação. Papai queria conversar. Perguntou se eu preferia lanchar naquela hora. Eu não sentia fome por causa das batatas fritas. Era melhor comer depois. Só não podia demorar demais porque eu não sabia a hora que ia sentir fome. Hugo foi dar uma volta. Eu preferia ir com ele. Quando papai fica sério é meio chato, eu não gosto de ouvir. Ele fala muitas palavras. Papai me chama a atenção quando percebe que eu estou distraído. Aí começa a explicar tudo do começo. Eu descobri um jeito dele não perceber. É só balançar a cabeça. Ele continua, ele pensa que eu entendi e eu não preciso ter medo de pensar outras coisas. Ele começou a falar. (...) Eu tive medo dele falar sobre mamãe. Ele nunca falava dela. Eu pensei que ele ia me contar que ela tinha morrido ou que foi internada outra vez ou então que ele não era meu pai de verdade, que eu tinha sido adotado no orfanato. Não era nada disso, ainda bem. Ele falou que eu devia saber certas coisas pra entender quem ele era de verdade. Ele amava mamãe. Por isso se casaram. Eu nasci por causa do amor deles. Eles gostavam de mim. Não sei se era verdade, Pedro me explicou que os filhos nascem depois que o pai e a mãe fazem sexo. Eu não sei bem como é, devo lembrar de perguntar. O amor do papai por mamãe tinha acabado. Por isso eles se separaram e mamãe adoeceu de tristeza. Ele mesmo tinha ficado triste, só não adoeceu. A separação tinha sido melhor pra nós três. Eu não me lembrava, eu tinha só cinco anos na época. (...) Papai parou de falar. Eu pensei que tinha acabado. Não tinha. Era pra mudar de assunto. Existiam muitos tipos de amor além do amor do marido e da mulher ou do amor dos pais pelos filhos. Por exemplo, uma mulher podia amar outra mulher. Ou um homem podia amar outro homem. Quem amava outra pessoa do mesmo sexo podia namorar, morar na mesma casa, dormir na mesma cama, poderiam até se casar. Não era errado. O amor era o mais importante de tudo pra qualquer pessoa do mundo. Eu nunca tinha ouvido falar sobre homem que namorasse outro homem. Eu pensava que homem só podia namorar mulher. (...) Eu não entendia bem a explicação. Não deu tempo de falar. Papai perguntou se eu gostava de Hugo. Eu gostava. Hugo vivia lá em casa, brincava comigo, me ensinava as dicas pra passar de nível no videogame, me dava presentes legais. Papai gostava de Hugo. Hugo gostava de nós dois. Eles eram namorados. Perguntou se eu achava bom Hugo morar com a gente. Eu falei que no meu quarto cabia outra cama. Papai riu. Eu me senti meio bobo. Eu entendi porque papai tinha sorrido. Hugo já dormia junto com ele na cama de casal. Hugo era o namorado do papai. Foi isso que papai disse. Hugo ia dormir na cama de casal junto com ele. Eles se amavam. Era como se eles casassem. Do mesmo jeito como papai se casou com mamãe. Eu ia ser uma espécie de filho deles. Eu perguntei se eles iam ter outro filho. Só se fosse adotado. Porque homens não engravidam. Mesmo sem entender direito, era ao mesmo tempo bom e esquisito papai namorar o Hugo. Hugo ia morar lá em casa, a gente ia brincar mais tempo. Esqueci de pedir pra ele explicar como os filhos nasciam, se era mesmo depois dos pais fazerem sexo ou se era por causa do amor. Não sei se Hugo também ia ser meu pai. (...) Papai riu. Ia conversar de novo. Meu sono aumentou. Abri a boca pra bocejar. Por sorte Hugo chegou. Ele olhou pra papai e papai olhou pra ele. Eles sorriram. Eu olhei os dois e ri também. Eles riram pra mim. Eles estavam sem graça. Hugo passou a mão na minha cabeça. Deu a volta na mesa e passou a mão na cabeça do papai. Eu senti um pouco de vergonha, parecia que todo mundo da praça de alimentação olhava pra gente. A conversa tinha terminado. Hugo piscou pra mim. (...) Eu já estava crescido. (...) Lembrei de perguntar com qual idade a gente deixava de ser criança. Quando eu crescer, eu quero ter um amigo igual a Hugo.


Mariazinha



1
Era uma vez uma história triste. Aconteceu no tempo das vacas magras.
Bem longe, no meio da floresta cortada por um rio caudaloso, em uma cabana tão pobre que só por milagre mantinha-se em pé, morava um casal de idosos.
O idoso pescava e vendia os peixes na feira da aldeia. A idosa lavava roupa pra fora. O único filho deles tinha sumido no mundo quando fez catorze anos e nunca mais mandou notícias.
Um dia que o idoso não tinha pescado nem uma piaba, veio um cesto boiando na correnteza. O idoso remou até o meio do rio recolheu o cesto. O idoso levou um susto. Ao invés de dinheiro ou algo valioso para complementar a renda do dia, havia um bebê. O idoso amarrou a canoa na margem. Chamou a idosa, que lavava roupa no remanso:
- O que nós faremos, minha velha?
 (...)
Passado um ano o menino aprendeu a andar e a falar. Era tão engraçadinho que Vovô e Vovó se apegaram. Menos um enjeitado no mundo. Menos um problema para o polícia cuidar.
Vovô e Vovó sempre quiseram uma filha. Chamaram o menino de Mariazinha.

2
Vovô e Vovó criaram Mariazinha como se fosse menina.
(...)
Mariazinha lavava, passava, carregava trouxa de roupa na cabeça, cozinhava, cuidava do roçado e vendia peixe na feira, sempre sorrindo. Só não aprendeu a ler e a escrever porque Vovô e Vovó achavam bobagem:
- Leitura não enche barriga.
(...)
Bem cedo Mariazinha levava a roupa lavada e passada para a aldeia e trazia roupa suja para lavar. Às vezes trazia também mantimentos, cachaça e fumo de rolo para Vovô mascar. Quando sobrava tempo, Mariazinha parava na porta da escola da aldeia, para ouvir as lindas histórias que a professora contava aos alunos.
Um dia Mariazinha demorou a vender os peixes e voltou tarde. Vinha com o cesto cheio de mantimentos. Cantarolava para espantar o cansaço e o frio.
De repente ouviu um barulho. O coraçãozinho disparou.
- Não deve ser nada, só um preá entrando na toca.
Nem avançou dez passos quando saiu da moita um homem medonho. O sangue de Mariazinha gelou. Só podia ser o bandido fugido. E era. Mariazinha quis correr. O bandido segurou-o pelo braço.
- O que o senhor vai fazer comigo?
- Vou te comer inteirinho, meu pequenino boneco de carne.
(...)

3
Além de ajudar Vovó a lavar e passar, Mariazinha aprendeu a pescar para sustentar a casa.
Certa tarde ao voltar da aldeia Mariazinha ouviu vozes e risos vindos da cabana. Estranhou. Vovó nunca recebia visitas.
Ao abrir a porta Mariazinha viu Vovó e o bandido deitados na cama, a garrafa de pinga virada no chão:
- Vovó!
(...)
Depois disso Mariazinha perdeu as esperanças.
O bandido fugido tinha tomado o lugar de Vovô. Ainda por cima Vovó gostava dele.
(...)

4
Os dias emendavam-se aos outros, as semanas seguiam-se aos meses e a vida na floresta seguiu o seu rumo. Até Mariazinha completar doze anos.
Mariazinha já era um rapaz.
Um rapaz, mesmo tendo sido uma boa menina a vida inteira, mesmo sem entender as mudanças que aconteciam no próprio corpo, entende rápido os reveses da vida.
E começa a pensar em como se livrar deles.
(...)
Enquanto o bandido cavava a cova no roçado para enterrar Vovó, Mariazinha pegou o revólver.
O revólver estava carregado.
Mariazinha saiu na porta apontando o revólver para a testa do bandido. Ele largou a pá e levantou os braços:
- Ficou doido, Mariazinha?
Mariazinha nem pestanejou. Puxou o gatilho e atirou no bandido, bem no meio da testa.
Mariazinha tinha boa pontaria.

(...)
Mariazinha sonhou pela primeira vez.

Um caçador de bigode e cabelos negros tirava Vovó da barriga do lobo, e um príncipe louro montado em um cavalo branco garboso beijava a princesa na boca, e o príncipe levava Mariazinha na garupa para o reino distante do Egito, e passavam por baixo do arco-íris, e Mariazinha segurava na cintura do príncipe, e os pássaros da floresta bicavam os olhos da madrasta malvada, e a maçã envenenada rolava no chão, e os anões traziam pedras preciosas, e os reis magos traziam ouro, incenso e mirra de presente, e a fada perguntava se Mariazinha queria ser menina ou menino, e a estrada de ladrilhos coloridos serpenteava até o por-do-sol, e o mar se abria para eles passarem, e as galinhas botavam ovos de ouro, e Mariazinha gastava o dinheiro do bandido, e comprava uma boneca, e se picava na agulha do bordado, e se matriculava na escola da aldeia, e esquecia o sofrimento, e o tempo das vacas magras acabava, e vivia feliz para sempre.