sexta-feira, 30 de maio de 2014

pelópidas e o batalhão sagrado

O general Pelópidas (séc. IV a.C) venceu uma das batalhas contra os espartanos com a ajuda do Batalhão Sagrado, uma tropa de elite do exército tebano que consistia de 150 pares organizados por idade. Vale a pena ressuscitar os 3 capítulos que Plutarco dedica a esse amoroso batalhão:

[...] compunha-se de trezentos homens escolhidos, assalariados e mantidos às expensas do erário público. [...] Outros querem dizer que era uma companhia de infantaria composta de homens enamorados uns dos outros. [...]

Plutarco cita o filósofo Parmênides que, com base na formação do Batalhão Sagrado tebano, criticou jocosamente a Ilíada de Homero, ao aconselhar os gregos a estratégia de se alinharem nas batalhas por nação ou linhagem:

Era necessário, dizia ele [Parmênides] colocar mais cedo um amante junto daquele que ama, porque os homens ordinariamente, ocupam-se bem pouco daqueles que são de sua nação nem de sua linhagem em perigo, mas um batalhão que seria composto de homens amorosos uns dos outros, não poderia jamais romper-se nem forçar, porque os amantes, pela afeição veemente que têm aos seus amados, tendo vergonha de fazer alguma coisa covarde ou desonesta diante de seus amantes, manter-se-iam uns por amor dos outros, até o fim.

No capítulo seguinte Plutarco discorre sobre aquele exemplo gay heróico clássico:


[...] se é verdade que os amorosos respeitam seus amores, mesmo quando estão ausentes, assim podem conhecer pelo exemplo, como daquele que, estando caído por terra, assim que seu inimigo levantou a espada para matá-lo, pediu-lhe que lhe desse o golpe de morte pela frente, com medo que seu amado vendo seu corpo morto, ferido nas costas, viesse a se envergonhar.

Plutarco prossegue falando dos amores entre Hércules e Iolau, de Laio (o pai de Édipo) e Crísipo (filho de Pelópidas) e de Platão, que chama o amante de amigo divino ou inspirado dos deuses.

Por fim o Batalhão Sagrado foi derrotado pelos exércitos de Filipe o Grande, da Macedônia. Quando Filipe percorreu o campo da batalha e deparou os trezentos homens do Batalhão Sagrado deitados por terra, todos perfurados por grandes golpes de lança através do estômago, e colocados, ainda cobertos com suas armas, uns junto dos outros, do que assombrou-se enormemente [...] e começou a chorar de piedade, dizendo: - "Que mal pode acontecer àqueles que julgam que tal gente faça alguma coisa de desonesto".

Plutarco encerra o excerto sobre o Batalhão Sagrado explicando as razões dessas estratégias militares pouco comuns:

[...]
Em suma, o inconveniente de Laio, que foi morto por seu próprio filho Édipo, não foi a causa primitiva deste costume que os tebanos tinham de serem amorosos uns com os outros, mas foram esses que primeiramente estabeleceram suas leis, os quais vendo que era uma nação corajosa e violenta por natureza, quiseram amortecer e adocicar um pouco a sua natureza, desde a infância e com esta intenção misturaram entre seus atos, o prazer e os deveres. [...] Igualmente também entre as diversões da juventude nos exercícios corporais, introduziram o uso do namoro, para temperar e adocicar os costumes e o natural de seus jovens.  [...] isto dá a entender que, onde a força e a valentia militar estão unidas e conjuntas com a graça da aparência e da persuasão, todas as coisas são reduzidas por esta união, a um belo, esplêndido e perfeito governo.

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Ou seja, o útil e o agradável para a felicidade geral da nação.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

diário das palavras-imagens

Atônito diante da esfinge. Dancei com lobisomens. Entre parêntesis. Os dióscuros. Neblina. Calabouço. Ossos.

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As palavras ocas. Zumbidos. A areia do deserto nos meus olhos. Travessia do Letes. Cérbero. Morcegos-lâminas entre os dentes. No oco do crânio. Vermes.

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A flor negra da morte em Baudelaire & Augusto dos Anjos. O beijo, amigo, é a véspera do escarro.

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Ruem os pilares que sustentam as abóbadas dos meus dentros. Rugem o mar, a besta tricórnea, a tempestade de granizo.

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A lentidão das horas. As palavras imprecisas. O fogo-fátuo das ideias. Haverá mesmo alma?

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O príncipe imerso. O jorro dos vulcões-falos. No aquário das almas-anêmonas.

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Sangria.

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Escuridão.

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Silêncio.









terça-feira, 27 de maio de 2014

autoajuda com bacalhau

Outro dia convidei para almoçar uma amiga que há muitos anos não via. Chamei outros amigos da época. Tentei caprichar no almoço. Pão de centeio e de farinha de arroz para os celíacos, pasta de grão-de-bico e berinjela de entrada. Salada bonita e saudável, com mussarela de búfala ou tofu grelhado para os intolerantes à lactose. Arroz milagrosamente soltinho. Arranjo de rosas-chá, margaridas, papos-de-anjo e lírios amarelos. Fruteira no centro da mesa ao ar livre, sobre a toalha rendada, quase como uma natureza-morta abstracionista (existe?), quase Kandinski quase Mondrian. Suco de uvas verdes, Incenso de alecrim - tudo perfeito. Exceto o prato principal.

Era uma receita nova. Os ingredientes eram de primeira. Bacalhau do Porto com muitos centímetros de espessura. Coloquei para dessalgar desde a manhã do dia anterior, trocando a água gelada a cada 4 horas. Fervi as postas no leite, depositei-as com a maior delicadeza sobre o leito de batatas cozidas e amassadas à mão, cobri com a camada de maionese e queijo parmesão, calculei o tempo e temperatura exatos para gratinar - e por fim espalhei naquela casquinha dourada ovos cozidos esfarelados e azeitonas pretas do tamanho de ovos de codorna.

Foi unânime o regozijo ao colocar o prato na mesa. A aparência era de dar água na boca. Mas na hora de comer, todos em silêncio. Nenhum elogio, nem por educação. O que o prato tinha de lindo, tinha de salgado. Muito salgado. Salgado mesmo. Intragável. De queimar a língua e os lábios.

Os convivas resolveram da melhor forma. Se empanturraram de arroz com azeite ou sanduíches feitos com os pães sem glúten recheados com as saladas e muito suco de uva.

O bacalhau especial salgadérrimo quase intocado rendeu risotos, escondidinhos, sopas e otras cositas más durante a semana seguinte ao evento.

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Mais recentemente houve outro evento especial, também em homenagem à amizades antigas. Devido a restrições orçamentárias e à falta de tempo, a receita foi elaborada com o que havia na geladeira e despensa: Azeite, 2 bandejas de peixe desfiado tipo bacalhau - aqueles vendidos a granel no supermercado por 1/5 do preço do verdadeiro. Só precisei comprar cebolas, brócolis congelado, batatas e pimentões coloridos - vermelho, verde, amarelo - um de cada.

Era o infalível bacalhau à portuguesa, tipo cozidão, tudo misturado, em camadas, receita que faço há anos, e nunca deu errado:

Untar a forma refratária com azeite; espalhar uma camada de batatas pré-cozidas, fatiadas mais ou menos com a espessura de 1cm; regar com azeite; espalhar uma camada de cebolas cortadas em pétalas; mais azeite; espalhar o bacalhau desfiado e dessalgado em pedaços não muito pequenos; mais uma regada de azeite; cobrir com outra camada de batatas; levar ao forno pré-aquecido a 250 graus por 30 a 40 minutos; depois de assado, enfeitar com tiras de pimentão colorido e flores de brócolis previamente refogadas no azeite, para amolecer; e espalhar as azeitonas.

Para evitar a problemática do prato anterior, eu coloquei de molho com mais um dia de antecedência. Foi o erro. Os tais peixinhos tipo bacalhau (acho que são feitos de filé de merluza) são delgados e não absorvem tão profundamente o sal quanto o verdadeiro e espesso bacalhau português-norueguês. O sal saiu todo. Ou seja, mais uma vez o prato ficou lindo, mas completamente insosso.

Pelo menos era mais fácil remediar. Nunca o saleiro foi tão utilizado.

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Uma das convidadas dos dois eventos era uma amiga que, além de gueixa é artista, filósofa, pitonisa e cozinheira de mão cheia. Ela tem um ditado mais ou menos assim: você pode saber as técnicas mais maravilhosas, os equipamentos mais sofisticados, cozinhar com os melhores ingredientes mas se não estiver inspirado não adianta por que algo vai dar errado.

Essa inspiração, segundo ela, tem a ver com amor e desprendimento. Você tem que vivenciar cada momento, desde os preparativos - as escolha dos ingredientes, a ida ao supermercado, o preparo, a arrumação da casa, a disposição dos pratos e dos talheres na mesa - aí tudo acontece, tudo flui, a comida ficará sempre deliciosa.

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E daí? Qual a moral, a conclusão da postagem?

Confesso, não sei bem. Realizar os dois eventos foi um esforço grande de sair da casca (ou, melhor, de trazer companhia para a casca, uma vez que está difícil sair dela), onde tenho permanecido mais tempo que o recomendável. Apesar do orgulho ferido do cozinheiro, no fim das contas pouco ou quase nada importou se a comida era boa ou ruim, chique ou trivial, salgada ou insossa. O que valeu - e vale sempre - é reunir as pessoas. Falar bobagens, rir, relaxar, deixar de lado as formalidades. Compartilhar com elas momentos de felicidade que, mesmo ínfimos, são únicos e perdurarão muito tempo, quem sabe até o final das nossas existências.

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Isso me faz lembrar o conto de Clarice sobre um almoço de sábado.

zeugma, em breve

Zeugma é a figura de linguagem pela qual se subentendem, em uma ou mais frases ou orações, palavras expressas em outra frase ou oração que com essas está ligada. Ex.: foi lançado o satélite, e [foram] capturados os seus sinais.

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Zeugma é o nome de uma antiga cidade romana, às margens do rio Eufrates, na Ásia Menor. Conta Plínio, o Velho, que a cidade era um ponto estratégico na rota da seda, que estabelecia o comércio do ocidente com a China. Em suas ruínas foram recuperados os famosos Mosaicos de Zeugma, hoje expostos no Museu de História da cidade de Gaziantep. As ruínas de Zeugma estão hoje encobertas pelas águas de uma represa de Birecik, ao sul da Turquia, próxima à fronteira com a Síria.

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Zeugma é também o título de um texto-imagem pop-enciclopédico que, queiram os deuses, será brevemente publicado, junto com O Livro dos Cacos, em primorosa, requintada, cuidadosa edição, para o deleite de leitores e admiradores.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

a mensagem

Há algum tempo recebi pelo celular a seguinte mensagem:

"Desculpa por interromper vc a essa hora. Meu nome e Deus. Pq vc nao se importa comigo??? Eu tenho protegido vc desde o dia q vc nasceu. tenho abencoado vc, quero essa msg no mundo inteiro, antes da meia noite, nao ignore, vc esta sendo testado (a), se vc fizer isso , eu irei corrigir 2 grandes erros em sua vida e vou ajudalo em algo que estas em necessidade e seu dia que segue sera muito abencoado, entao envia essa msg para 14 pessoaa em 10 minutos".

Minha primeira providência foi checar o número na lista de contatos. Não constava. Só podia ser engano. Ou será que ele recorrera ao superpoder da onisciência?

Senti um calafrio. Mesmo com toda formação ateia socialista pelo lado paterno, havia resquício daquele temor e culpa ancestral, católico apostólico português, espanhol, mineirinho do resto da família. Nunca um clichê se encaixou tão bem: yo no creo, pero...

A essa altura os neurônios responsáveis pelo materialismo dialético histórico do cérebro tinham entrado em curto-circuito. Empiricamente liguei para o número registrado na mensagem.

Ainda tive coragem de esperar o primeiro sinal de chamada. Desliguei em seguida. Vai que ele atende? Eu gaguejaria: Senhor? Milord? Vossa Excelência? Vossa Santidade? Pai? E o que eu diria depois?

Quem dera eu tivesse a desenvoltura da amiga que bate altos papos com ele, via e-mail.

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Deixei a taquicardia passar, o temor esfriar, tentei me acostumar com o sobrenatural. Fui cuidar da vida. Editar uns depoimentos para a pesquisa, pensar em soluções para o trabalho encalacrado, estudar a lição de inglês, pagar umas contas pela internet, ligar para o novo amor, tomar uma taça de vinho para relaxar, ver um filme, tomar banho e dormir.

Para só no dia seguinte pensar na mensagem divina.

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Muito antigamente o formato utilizado por Deus chamava-se corrente. A pessoa recebia uma carta (geralmente anônima) com a mesmíssima estrutura formal do texto em tela. Podia ser da parte de um devoto de santo, de pessoa necessitada (geralmente estrangeira). Prometiam benefícios, materiais ou, menos comuns, espirirtuais. Pediam em troca dinheiro, selos, preces - depósitos em fé ou espécie. Quase todas encerravam-se com a ameaça:  

Frau Helga, de Munich, quebrou a corrente e perdeu todo o dinheiro aplicado na poupança. Mariazinha Silva, de Belém do Pará, quebrou a perna. Bob Wilson, do Texas, rasgou a carta e no mesmo dia a esposa o abandonou. Então resgatou a mesma e a reenviou para 55 pessoas e no dia seguinte a esposa voltou trazendo 1 milhão de dólares. Assim por diante.

O destinatário deveria copiar e remeter a referida carta para a quantidade de pessoas nela especificadas e, na calada da noite ou à primeiras luzes do alvorecer, enfiava cada uma das cópias nas caixas de correio ou pelas frestas das portas das casas da vizinhança. Depois era só aguardar a benesse, a vantagem ou o milagre prometido.

Passado o período pré-histórico das cartas manuscritas e depois xerocadas, veio a moda das correntes por e-mail. Teve uma época em que as caixas postais eletrônicas ficavam abarrotadas delas. Modernizadas e potencializadas e disseminadas ao extremo, porém totalmente estagnadas no que se refere ao estilo: as mesmas explicações, ameaças, exemplos, apelos e ordens.

Agora a novidade: corrente via celular.

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Insone madrugada afora, resolvi analisar a mensagem.

Ao invés daquelas intervenções épicas (oceanos se abrindo, vozes estereofônicas vindas das nuvens, relâmpagos, ventanias ou eclipses) ele optou pela simplicidade da modernidade, utilizando-se de uma ferramenta tecnológica tão banal e eficaz quanto o messenger. Criatividade celestial.

1. Apesar da qualidade questionável, o texto criado pelo publicitário dono da conta Divina atingiu os objetivos: ser extremamente pessoal abrangendo ao mesmo tempo o máximo de ovelhas desgarradas do rebanho. (Se não fosse a possibilidade dos dois gêneros na palavra testado(a), eu juraria que a mensagem era exclusiva).

2. Se a mensagem foi digitada sem a ajuda do publicitário, ele se esqueceu de ativar o corretor automático.

3. Ou então estava com muita pressa para não se demorar nos acentos, nas cedilhas e nas concordâncias. Pressa justificável para quem construiu o universo em 6 dias.

4. Ou então, ainda e mais plausível, não era obrigado a conhecer a fundo o português, uma língua tão complicada e não tão sagrada quanto o hebraico (sua língua original) nem tão universal quanto o inglês.

5. O provável dedo do provável publicitário, atualizando e adaptando a velha mensagem (a mesma desde o tempo em que a serpente ofereceu o fruto proibido a Eva) à informalidade das síncopes utilizadas pelos usuários das redes sociais: vc, pq, msg.

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Empaquei. Ou caí no peguinha preparado por ele. Afinal, quais os 2 erros eu elegeria para serem corrigidos, dentre os tantos grandes erros cometidos em mais de meio século de existência?

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Por fim rascunhei a resposta:

Prezado Deus,

Espero não magoá-lo por não levar a diante vossa corrente. Por 3 motivos: primeiro, por não ter suficientes amigos íntimos quanto os exigidos para apontar-lhes os erros e assim disseminar e tornar eficaz a vossa campanha publicitária. Segundo por não conseguir decidir quais seriam os dois, dentre os tantos erros pelos quais vós corrigiríeis. Por último, sem ser desrespeitoso, por eu ser daqueles pessimistas negativistas agnósticos que não acreditam em destino e muito menos na possibilidade de sua mudança. E que, apesar do apego ferrenho à vida, apregoa que viver é o nosso maior erro.

PS.: se achar que vale a pena posso vos indicar um excelente e barateiro revisor ortográfico-gramatical-estilístico.

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Mandei? óbvio que não. E se ele não entendesse o gracejo? se considerasse blasfêmia essa postagem? se se enfurecesse a ponto de bloquear o sinal ou clonar meu celular, por exemplo, enviando à revelia, a mensagem para todos os meus centos de contatos?

Ou atirasse um raio para rachar minha soberba ao meio?

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(O castigo veio. Não como raio, vírus virtual, bloqueio de sinal. Veio na forma da crise criativa que se estende desde o dia em que rascunhei a resposta à interpelação divina até sabe-se lá quando - crise de tal proporção que me obriga a publicar este texto ruinzinho só para não deixar os preciosos 4 seguidores do blog abandonarem-no, deixando-o morrer à míngua).

 

post scriptum para a postagem sobre o praia do futuro

Há de se ficar atento quando não há unanimidade de opiniões, como está sendo o Praia do Futuro. É um filme provocador. Não vejo as lacunas, a falta de ritmo, as cenas maçantes que alguns críticos, leigos ou não, apontam. Nem senti falta de enredos mirabolantes, emoções avassaladoras, personagens heroicos. É um filme sobre as nossas vidas medianas, as nossas inseguranças diárias, nossas indecisões, as nossas paixões sempre turbulentas no começo (como as ondas da Praia do Futuro, em Fortaleza) mas fadadas ao frio invernal cinzento em Berlim ou em qualquer cidade que possa representar o desterro existencial ao qual estamos fadados.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

história de verão insular 3

Era a tua última semana e você já se sentia seguro para voltar para o hotel no último ônibus, o da meia-noite. O ônibus estava cheio e você não contava com isso.

Você estava exausto após 10 horas de caminhadas em lugares e vistas exóticas e exuberantes e alguns gins-tônica durante o jantar. Você estava distraído, isolado pela música alta dos fones de ouvido. Você colocou a mochila no chão, entre as pernas, para não atrapalhar as pessoas.

Você sentiu que alguém parou ao seu lado e segurou a barra de apoio e encostou de leve a mão na tua mão. Você afastou a mão alguns milímetros. O ônibus sacolejou na curva e a mão alheia voltou a encostar na tua. A mão era fina e delicada mas indubitavelmente uma mão de homem.

Você voltou um pouco a cabeça na direção mas não conseguiu ver muita coisa. Você tinha tirado as férias para esquecer o passado amoroso recente e ainda não estava preparado, não estava a fim de aventuras aleatórias. Você retirou a mão da barra e segurou a correia individual que pendia da barra presa ao teto. A mão fina e delicada pegou a correia mais próxima e a fez deslizar até encostar de novo na tua mão.

Você se voltou inteiro para olhar de frente o dono da mão. Deparou-se com o rosto mais lindo e angelical e viril ao mesmo tempo de toda a tua estadia. Cílios longos, sobrancelhas negras e espessas, barba por fazer e uma boquita vermelha capaz de te tirar qualquer um do sério, de arrancar pela raiz a tua intenção das férias interiorizadas e celibatárias.

Você relaxou a postura. Deixou a mão junto da mão fina e delicada. Sentiu o dedo mindinho da mão fina e delicada acariciar delicadamente o teu dedo mindinho carente segurando a correia de apoio do ônibus. Sentiu outra mão roçando muito de leve, quase sem encostar, as tuas costas, naquele lugar sensível à altura da lombar.

Fechou os olhos imaginando um futuro de areias cor-de-rosa, ondas verde-esmeralda e nuvens de algodão flutuando no límpido céu azul-bebê. Nos braços, é óbvio, do dono das mãos ousadas.

Você abriu os olhos pouco antes da parada em frente ao hotel. Você se perguntou: Será que foi um sonho?

Não havia mais mão, nem dono da mão, nem ninguém parecido por perto. Também não havia a mochila entre os seus pés nem o passaporte, o cartão de passe e a carteira com muitos dólares e o bilhete do voo de volta, para dali a 2 dias, no bolso de trás da calça.

história de verão insular 2

Ventava um pouco mas o sol da manhã te aquecia a pele. Você deixou partir o barco anterior só para ser o primeiro da fila do próximo e escolher a melhor cadeira do convés, no andar superior, para fotografar o mar azul turquesa durante a travessia do canal.

Você preparou a máquina fotográfica mas se distraiu admirando a paisagem: um bloco de rocha corroída da altura de um edifício de muitos andares emergindo do mar, gaivotas sobrevoando, ao fundo o cone do vulcão extinto e alguma neblina.

O rapaz vestido com jeans justos e casaco de couro e óculos rayban que você tinha notado no cais subiu a escada. Posicionou-se de pé, em frente às cadeiras ocupadas pelos passageiros, te obstruindo a visão.

O rapaz passava displicentemente a mão na região do baixo ventre. Como se o gesto fosse involuntário. Quem sabe um tique nervoso? Você desviou o olhar. Ligou e desligou a máquina fotográfica esquecida no colo. Pensou mas logo desistiu de se levantar e se encostar na amurada para sair do ângulo de visão do rapaz. Por fim guardou a máquina na mochila.

Você não conseguiu evitar olhar de rabo-de-olho. Constatou que o rapaz estava excitado. Você imaginou que ele tentava manter contato visual com você. Por detrás das lentes verde-escuras dos óculos. Você se constrangeu. Corou como uma virgenzinha.

Apesar de sexo casual não ser o seu propósito marinho matinal você tirou conclusões apressadas. A partir de incertezas. Encarou. Autojustificou-se: "vamos ver onde vai dar".

Sorriu maroto e discreto.

Coincidentemente a luz da cena mudou: uma nuvem encobriu o sol por alguns instantes. Justo o tempo de o rapaz franzir o cenho. Fazer cara de surpresa, aversão e desprezo, nessa sequência. Avançar na tua direção, você imaginou - que ele te fosse cuspir.

Mas ele sorriu e te estendeu o celular e te pediu para tirar uma foto dele, com o rochedo, o mar azul turquesa, as gaivotas e o cume do vulcão oculto pelas nuvens, ao fundo.

história de verão insular 1

Eram 10 horas e você estava sentado sozinho com cara de sono na mesa mais ao fundo da padaria lotada de gente. Levando a xícara à boca com cuidado para não deixar pingar o café-com-leite que a garçonete deixou derramar no pires. E planejar o passeio do dia, o primeiro dia de férias.

A mesa em frente estava ocupada por uma família de também turistas: pai, mãe, 2 filhos. A mãe estava de costas, os filhos um de cada lado da mesa e o pai diante de você, em ângulo impossível de se evitar olhares cruzados.

Você tentava, mas não conseguia parar olhar. Você tentava, mas não conseguia deixar de ouvir: a mãe queria passear de barco. O pai preferia ficar na praia. O casal de filhos jogava em aparelhos de minigame, indiferentes. O pai não disfarçava a irritação diante da proposta da mãe. Que falava incessantemente, como se não necessitasse de interlocutor.

Você tentava não inventar enredos. Tentava não pensar em quanto tempo durariam e como seriam tediosas as férias daquela família.

Ops!, você notou o olhar fixo do pai em você. Bem dentro dos teus olhos. Você se desconcertou. Desviou o olhar pelas outras mesas, pelo balcão de vidro, pela garçonete, pela recorte da rua emoldurado pela porta. Você cogitou: o olhar do pai estaria pedindo cumplicidade? Você olhou de novo para ter certeza. Franziu suave a testa, e quase sorriu, simpático, como se dissesse: "o que eu posso fazer?"

Você demorou a perceber: o pai passava carinhosamente o dedo na borda interna da xícara e a ponta da língua nos cantos da boca enquanto te devorava com o olhar.

terça-feira, 20 de maio de 2014

diário dos dias sem nexo

Comédia dramática portenha para dormir & Cães de aluguel antes do café da manhã.

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Dias de cão hidrófobo, dias de cachorro louco, dias taquicárdicos de lobisomem.

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Julgamento. Catacumbas. Cactos & dracenas. Ciúmes & desconfiança. Inércia, vácuo, marasmo, death. Céu de apocalipse ao entardecer.

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Sonhos intensos. Mais densos e reais que a realidade.

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Dias de enterrar a cabeça na areia. De não atender o telefone. De faltar compromissos. De passar horas sentado diante do espelho ou da tela do computador. De apagar os rastros, os contornos. De pular do parapeito da varanda do primeiro andar. De desmaterializar.

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Mas o novo amor veio e ficou e acendeu as luzes e arrumou a mesa dos papéis e varreu o chão e lavou a louça acumulada e tirou as teias de aranha dos cantos e cantou até que eu dormisse e apagou os sonhos ruins.

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Monstros primordiais antecipando a catástrofe. A surpresa do fauno na manhã de ventania. As prostitutas & sexo & rock’n’roll na W3. O passado retorna e me joga de novo no mesmo ponto. A pedra de Sísifo, o fígado de Prometeu. Sabe onde fica a cidade de Zeugma?

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Preciso encetar objetivos. Finalizar projetos, iniciar novos. Terminar leituras & releituras. Me esforçar. Superar o tédio e a falta de sentido de tudo. Plantar a roseira no chão da sala. Casar de novo ou comprar uma bicicleta.

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Os vikings desembarcaram e incendiaram as paliçadas, as fortificações. A areia das minhas pálpebras ficou tingida de sangue & excrementos.





dia das mães no grande sertão

Mãe é muito mais mãe no sertão.

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O texto a seguir era uma homenagem ao dia das mães. Servia para mostrar que na ética rude dos jagunços, a mãe de cada um ocupa o lugar sagrado, santificado. Falar mal da mãe e ser chamado de ladrão são as piores ofensas, e dessas não há saída nem perdão. A obrigação do ofendido era lutar até vingar a ofensa com a morte do ofensor.

Abandonei pelo meio e a ideia se perdeu. Perdeu-se também o sentido da tentativa de recuperá-la. Porém, para não desperdiçar o trabalho, vale a pena ler nem que seja pela beleza dos trechos transcritos.

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O julgamento de Zé Bebelo é um trecho é seminal do romance. A partir dele Riobaldo assume para si mesmo o amor físico e carnal por Diadorim, e a malignidade do Hermógenes revela-se quando este, juntamente com o Ricardão, assassinam Joca Ramiro à traição.

É um julgamento sem lei. Ou melhor, na lei inexorável do sertão.

Riobaldo narra de forma a confundir o interlocutor, disfarçando o limite entre o trágico e o cômico, o  puro lorotal de Zé Bebelo. O trecho me faz lembrar o chá da lebre de Março, em Alice no país das maravilhas:

O julgamento? Digo: aquilo foi coisa séria de importante. [...] "O que nem foi julgamento legítimo nenhum: só uma extração estúrdia e destrambelhada, doideira acontecida sem senso, neste meio do sertão..." - o senhor dirá. [...] Ah, mas, no centro do sertão, o que é doideira às vezes pode ser a razão mais certa e de mais juízo!


[...]

"Homem engraçado, homem dôido!" - Diadorim ainda achava.
[...]
Tinha sido aquilo: Joca Ramiro chegando, real, em seu alto cavalo branco, e defrontando Zé Bebelo à pé, rasgado e sujo, sem chapéu nenhum, com as mãos amarradas atrás, e seguro por dois homens. Mas, mesmo assim, Zé Bebelo empinou o queixo, inteirou de olhar aquele, cima a baixo. Daí disse"
- "Dê respeito, chefe. O senhor diante de mim, o grande cavaleiro, mas eu sou seu igual. Dê respeito!"
- "O senhor se acalme. O senhor está preso..." - Joca Ramiro respondeu, sem levantar a voz.
Mas, com surpresa de todos, Zé Bebelo também mudou de toada, para debicar, com um engraçado atrevimento:
- "Preso? Ah, preso... Estou, pois sei que estou. Mas, então, o que o senhor vê não é o que o senhor vê, compadre: é o que o senhor vai ver..."
[...]
Assim isso. Tolêimas todas? Não por não.

Assim por diante.

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Joca Ramiro reúne os maiorais Sô Candelário, Hermógenes, Ricardão, Titão Passos e João Goanhá numa confa. Trazem Zé Bebelo, que se senta no tamborete de Joca Ramiro, colocado no centro do círculo formado pela jagunçada. Sugere, com a maior cara de pau, que os outros sentem-se no chão. Os jagunços se eriçam com tamanha ousadia. Joca Ramiro aceita o displante. Só então Zé Bebelo abandona o banquinho, sentando-se ao mesmo nível dos outros.

Então começam a falar os maiorais, principiado pelas acusações e sentença de morte cruel, pelo Hermógenes:

- "Acusação, que a gente acha, é que se devia de amarrar esse cujo, feito porco. O sangrante... Ou então botar atravessado no chão, a gente todos passava a cavalo por riba dele - a ver se a vida sobrava, para não sobrar!"

Depois da fala do Hermógenes Zé Bebelo pira de vez. Ironiza, achincalha a fala com gestos e interjeições debochadas. Encara e enfrenta o olhar do Hermógenes. Faz a raiva do Hermógenes ferver. Ao ponto dele exigir, numa voz rachada em duas, voz torta e entortada (a voz do demo?):

- "Tibes, trapo, o desgraçado desse canalha que me agravou! Me agravou, mesmo estando assim vencido nosso e preso. Meu direito é acabar com ele, Chefe!"

Os jagunços se eriçam. Resmungam em aprovação. Os do bando do Hermógenes incitam a vingança em voz alta. Mas Joca Ramiro era mesmo um líder, um tutùmumbuca, grande maioral. Contrapôs:

- "Mas ele não falou o nome-da-mãe, amigo..."
E era verdade. Todo o mundo concordou. [...] Só para o nome-da-mãe ou de "ladrão" era que não havia remédio, por ser a ofensa grave.

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Fato inquestionável. O Hermógenes foi obrigado a engolir a raiva. E provavelmente amadurecer a ideia da traição e assassinato de Joca Ramiro, dando então início à verdadeira saga do romance.

praia do futuro, o filme


Vi, no sábado, Praia do Futuro, filme recente de Karim Aïnouz, com Wagner Moura, Clemens Schick e Jesuíta Barbosa. 

Junto com o público mal-educado característico de shopping no sábado à noite: barulho de papel amassado dos sacos de pipoca, muita conversa em voz alta, celulares tocando ou piscando ao lado e aquelas ridículas e insuportáveis expressões de surpresa das mocinhas quando apareceu algo tão chocante como bunda de homem ou pior, ostensivamente reprovadoras quando rolou a primeira cena de sexo entre os protagonistas.

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Não entendo essa surpresa das moçoilas. Nem o motivo pelo qual elas têm que a expressar - e expressar seu repúdio de maneira tão veemente. Será que não sabiam a sinopse? Não viram o trailer? Não leram nas redes sociais? Ou será elas imaginarem - nas profundezas de seus inconscientes - se é possuem - e não quererem admitir - os seus próprios namorados nos braços ou sob o charmoso alemão motoqueiro?

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Dizem que o grande público frustra-se ao não rever as proezas metrossexuais do super-herói Capitão Nascimento, personagem que Wagner Moura  imortalizou em Tropa de Elite I e II. E se enfurece ao constatar que o estereótipo do soldado machão brasileiro esvazia-se e se contradiz na crise de identidade do quase atormentado e frágil bombeiro salva-vidas gay ao se defrontar (e lutar por)  uma paixão por outro homem.

Será? 

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As conversas em voz alta e um ou outro "psiu" na plateia prosseguem. Para felicidade daqueles gatos pingados que queriam assistir ao filme, os jovens casais hetero chocados vão saindo da sala ao rolar o beijo (depois da primeira transa) entre os protagonistas. Na 2a. cena de sexo (cru e quase explícito), lá pelo meio do filme, finalmente a sala está quase vazia e  silenciosa.

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É um lindo filme. Poético, contundente, essencial. Áspero, intenso, visceral, como disse o jornalista de O Globo. A fotografia é primorosa. A música, perfeita. Os atores de primeira. Ao contrário da maioria dos filmes nacionais, a direção de ator foi bem feita. Roteiro, cortes, ritmo - tudo é impecável. 

Longos silêncios, diálogos essenciais, trilha sonora, texto e subtexto perfeitamente encadeados entre palavra, som e imagem. 

Daqueles filmes que você sai com a impressão de ter vivido toda uma existência paralela durante as 2 horas da projeção. 

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Apesar do diretor propositadamente utilizar-se de vários clichês românticos gays (um melodrama de macho, como afirma o título da matéria na Folha de São Paulo), Praia do Futuro está muito além dessa generalização. Desenrola-se no filme uma grandiosa e ao mesmo tempo ridícula história de amor humano. 

A sensação foi a mesma de quando vi pela primeira vez Brokeback Mountain. Com vontade de que não terminasse. Com vontade de ver de novo. Com vontade de que todo mundo visse e se emocionasse e mergulhasse e saísse do cinema transtornado e transformado. Arrebatado.

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Pena as moças e moços mencionados no segundo parágrafo não terem ficado até o fim do filme. Pena não terem se esforçado para entender que o nojo e o horror que faziam tanta questão de expressar era estupidez, ignorância, estreiteza de espírito. Era puro medo de encararem-se a si mesmos no espelho onde perderam a oportunidade vivenciar uma experiência estética para além das conversas bobas, das mensagens vazias do celular, do saco de pipoca e do copo de refrigerante.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

diário do dia nublado com trecho clássico

Acordo sempre cedo. Geralmente de mau-humor. Preciso de um tempo sozinho até me acostumar com o dia. Hoje tive que acordar bem mais cedo. Às correrias, por conta de levar a senhora X ao médico. Na outra extremidade da cidade. O trânsito nesse horário é intenso.

Sou relativamente calmo, não me estresso no trânsito. Mas ultimamente, dirigir em horários de pico ou em pistas movimentadas também tem me deixado de mau-humor.

Para completar, a senhora X matraqueava incessantemente uma porção de assuntos dos quais eu não tinha o menor interesse. Em um tom de voz alterado, irritante. Isso também me deixa irritado. Resumindo: eu estava uma pilha de nervos.

A certa altura, mudei de pista na forma correta: verificar o espaço existente, olhar pelo retrovisor e dar seta. Então ouço buzinadas e piscadas de luz do carro que vinha atrás, me admoestando por e ter ocupado o espaço que poderia ser dele. O idiota ainda alinhou-se ao meu e carro me olhou de cara feia. Foi a gota d'água. Minha adrenalina explodiu. Abri o vidro e - coisa que nunca fiz antes - encarei de volta e, furioso e berrei vários palavrões.
 
Eu me assustei comigo mesmo. Acho que se o trânsito estivesse menos complicado, o cara teria parado o carro para tirar satisfações ou me dado um tiro. Ou provocado um ataque cardíaco na senhora X.

Que nada. A senhora X, nem tchuns. Deu uma pausa assustada de 30 segundos. Depois prosseguiu palreando por todo o Eixão, Norte e Sul, até a porta do consultório.

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Enquanto esperava o fim da consulta da senhora X, o trecho abaixo, de Iaiá Garcia, me vez pensar:

O Sr. Antunes, que não era de extremas filosofias, tinha a convicção de que debaixo do sol, nem tudo são vaidades, como quer o Eclesiastes, nem tudo perfeições, como opina o doutor Pangloss; entendia que há larga ponderação de males e bens, e que a arte de viver consiste em tirar o maior bem do maior mal.

(Para quem não sabe ou não se lembra, Pangloss é o mentor de Cândido, na novela Cândido, ou o Otimismo, de Voltaire. O principal lema de Pangloss é: "tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis").

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Que o mau-humor dê um tempo no almoço do dia das mães.



terça-feira, 6 de maio de 2014

a enciclopédia

Imagem do verbete: Jardim, Reinaldo - na Delta Larousse recuperada. 1970.
Quase me esquecia: o projeto novo tem a ver com enciclopédia. Aquela coleção de livrões pesados, grandes, que geralmente ficava na prateleira da estante acima da TV, que continham em verbetes de A a Z todo o conhecimento humano antes da internet e do Google, de onde a gente copiava a maior parte dos trabalhos escolares.

Pois é. Herdei involuntariamente duas delas quando mudei para a atual casa: uma Delta Larousse em 12 volumes e uma Larousse Cultural, 20 volumes. O que fazer com elas? Doar? só se fosse para reciclagem, uma vez que foram recusadas pelas bibliotecas públicas consultadas. Deu pena, guardei. A Larousse Cultural que estava em melhor forma foi para a estante. A Delta, muito detonada, foi encaixotada e guardada de qualquer jeito no quartinho de tralhas.

Acordei hoje incorporado no bicho-arrumadeiro. Tirei os volumes da caixa, limpei com pano seco um a um. O volume do fundo estava em pior estado. Páginas coladas pela umidade e muito mofo. Coloquei-o no sol. Desgrudei folha a folha, com muito cuidado. 1 hora ou 2 de trabalho braçal. Enquanto descolava e limpava as folhas, todo o projeto do livro novo que estava bloqueado no pensamento veio fluindo, definindo-se, se esclarecendo, junto com as lembranças e a leitura de um verbete ou outro, quase intacto ou semi-encoberto pelo mofo preto do esquecimento.

diário cinematográfico

Assisti hoje ao Jardim Atlântico, filme nacional de Jura Capela, com Sylvia Prado, Mariano Mattos e outros. Apelidaram o filme de musical por causa da presença e performance de competentes instrumentistas e cantoras da nova geração em grande parte da fita.

Filme experimental (!?) com imagens fortes: as tomadas submarinas do início, o minotauro emergindo da carcaça do navio naufragado, o Jardim Botânico, o erotizado carnaval de Olinda, etc. 

Porém, a certa altura, lá pela metade, comecei a bocejar. Motivo: o filme padece de dois males incuráveis de grande parte da produção nacional. Falta trabalho de ator e esmero nos diálogos. 

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Lindo o Cine Brasília reformado. Som estéreo, ar condicionado, escadaria vermelha, tela nova, poltronas confortáveis, cadeiras de design no hall (no lugar dos incômodos, porém exóticos praticáveis hexagonais recobertos por carpete marrom), torneiras e bancadas tinindo nos banheiros, etc. 

Como nos velhos tempos: na sessão das 15 horas, o luxo daquela sala enorme só para mim e para a amiga gueixa.  

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Ontem a pasmaceira foi geral. Liguei a TV cedo para terminar de ver o filme iniciado na noite anterior e não desliguei mais. Saldo: um filme bacaninha sobre a vida das esposas de Malcolm X e Martin Luther King, um documentário sobre o projeto dos irmãos Roberto, não selecionado para a construção de Brasília, um romance-suspense-idiota inglês dos anos 80 com um galã gostoso protagonizando cenas picantes de sexo hetero com uma loira platinada e, para completar, uma ficção muito mal arranjada mas eletrizante sobre o final do mundo que não aconteceu em 2012.

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Ao contrário da pasmaceira de ontem, o dia hoje foi intenso: marquei consulta com o dentista, visita do marceneiro e encomenda de projeto de puxadinho para o arquiteto; reservei vaga em um curso e um seminário; li mais de 20 páginas dos livros de cabeceira, postagens e e-mails de amigos; escrevi este e outro texto; escovei a gata; listei os afazeres da semana; coloquei o lixo na rua; fiz um brainstorm frutífero para o projeto das possíveis novas publicações; fui ao cinema, e lanchei com a amiga, como descrito nos parágrafos acima; e até agora não liguei a TV.


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Já com relação aos temas afetivos, parodiando príncipe brother: há algo de indecifrável pairando no ar do reino da Dinamarca.

conjecturas sobre o grande sertão (erguendo bandeiras)

Depois do julgamento e absolvição do chefe inimigo Zé Bebelo, era o fim da guerra. Os mais de 500 jagunços vencedores, comandados por Joca Ramiro dividem-se em grupos menores e se dirigem para regiões diferentes do sertão.

Joca Ramiro segue com  Hermógenes e Ricardão. Riobaldo e Reinaldo-Diadorim seguem no bando de Titão Passos. Por 2 meses, trégua entre uma guerra e outra, o bando acampa em um lugar paradisíaco (e fatídico, como se verá mais tarde) chamado Guararavacã do Guaicuí:

Ali era bonito, sim senhor. Não se tinha perigos em vista, não se carecia de fazer nada. [...] O que, por começo, corria desino para a gente, ali era: bondosos dias. Madrugar vagaroso, vadiado, se escutando o grito a mil do pássaro rexenxão - que vinham voando, aquelas chusmas pretas, até brilhantes, amanheciam duma restinga de mato, e passavam, sem necessidade nenhuma, a sobre. E as malocas de bois e vacas que se levantavam das malhadas, de acabar de dormir, suspendendo corpo sem rumor nenhum, no meio-escuro, como um açúcar se derretendo no campo. Quando não ventava, o sol vinha todo forte. Todo dia se comia bom peixe novo, pescado fácil. [...] Nunca faltava tempo para à-toa se permanecer. Dormir sestas inteiras, por minha vida. Gavião dava gritos, até o dia muito se esquentar. [...] O que é de paz, cresce por si: de ouvir boi berrando à forra, me vinha a ideia de tudo só ser o passado no futuro. 

Foi nesse jardim do éden sertanejo que pela primeira vez Riobaldo assumiu para si mesmo o amor e o desejo por Diadorim:


Aquele lugar, o ar. Primeiro fiquei sabendo que gostava de Diadorim - de amor mesmo amor, mal encoberto em amizade. Me a mim, foi de repente, que aquilo se esclareceu: falei comigo. Não tive assombro, não achei ruim, não me reprovei - na hora. [...] O nome de Diadorim, que eu tinha falado, permaneceu em mim. Me abracei com ele. Mel se sente é todo lambente - "Diadorim, meu amor...". [...] Um Diadorim só para mim. [...] Eu devia de ter principiado a pensar nele do jeito de que decerto cobra pensa: quando mais-olha para um passarinho pegar. Mas - de dentro de mim: uma serpente. Aquilo me transformava, me fazia crescer dum modo, que doía e prazia. Aquela hora, eu pudesse morrer, não me importava.

Depois do enlevo, do êxtase, quase epifania do amor revelado, vem o bote e o veneno da serpente da culpa:

"Se é o que é" - eu pensei - "eu estou meio perdido..." Acertei minha ideia: eu não podia, por lei de rei, admitir o extrato daquilo. Ia por paz de honra e tenência sacar esquecimento daquilo de mim. Se não, pudesse não, ah, mas então eu devia quebrar o morro: acabar comigo! - com uma bala no lado de minha cabeça, eu num átimo punha barra em tudo.

Porém os acontecimentos tomam outro rumo quando chega a notícia da morte de Joca Ramiro, à traição, pelos judas Hermógenes e Ricardão.

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Exceto uma dica lá pela terça parte do livro, Rosa leva o amor gay do jagunço Riobaldo pelo jagunço Reinaldo-Diadorim em suspense crescente até as últimas páginas quando, com sua morte, revela-se a identidade feminina de Diadorim.

Parte dos críticos não admite o desfecho. Consideram covardia de Rosa encobrir a homossexualidade estrutural do Grande Sertão. Afinal, a grosso modo, o conflito das mais de 500 páginas da tentativa de Riobaldo sair do armário, estaria irremediavelmente aniquilado com o absurdo da solução encontrada pelo autor: adaptar o romance à conformidade moral & social vigentes, transmutando em mulher o objeto de desejo homoafetivo no narrador.

Sem negar o deslumbre renovado pelo GS:V a cada tresleitura, eu faço parte desse coro. Querendo ou não, o Grande sertão é, além de um dos mais maravilhosos textos da língua portuguesa, talvez o mais importante romance gay escrito até hoje.

E lanço dúvidas: A magnificência, a grandiosidade, a universalidade do GS:V estaria comprometida se, no fim - ao lado do cego Borromeu e do menino Guirigó e diante da jagunçada - se, diante do corpo morto e nu do amado, o narrador Riobaldo assumisse o amor-estrela, o amor-guia, o amor-transformação - o amor que ele, o jagunço Riobaldo sentiu pelo jagunço Reinaldo-Diadorim? 

Ou isso estaria  muito além do alcance de Rosa e da própria época em que o romance foi escrito?

domingo, 4 de maio de 2014

diário do primeiro domingo do outono

Ouvindo Mozart na rádio Câmara. Depois de lavar a louça do almoço. Do almoço sempre agradável, os agradáveis amigos de sempre. Muita comida e muitas muitas histórias dos tempos antigos e dos tempos que virão.

Mais a priminha, de 4 anos, super astral, cantando a triste e longa romanza da Dona Baratinha e Dom Ratão, que caiu na feijoada justo no dia do casamento. Para esquecer a tragédia, Dona Baratinha foi ao shopping comprar umas coisinhas e lá encontrou o Baratão. Viveram felizes para sempre.

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A propósito de Mozart, vai a frase ouvida no rádio ontem: Einstein afirmou acreditar no homem porque Mozart existiu, e Mozart era um ser humano.

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Ainda fascinado pela beleza das cores do novo prato/bandeja/saladeira pop adquirido por uma pechincha em um stand de refugos do hipermercado.

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Dúvida existencial: continuar a ouvir Mozart no rádio ou assistir reprises dos programas do Chacrinha e depois um especial sobre Cartola na TV a cabo recém-instalada?

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Sessão literatura: saboreando frase a frase, palavra a palavra, concomitantemente, dois dos mais tocantes trechos da literatura em língua portuguesa: o julgamento de Zé Bebelo no Grande Sertão e a revelação do segredo de Helena, em Machado.

sábado, 3 de maio de 2014

sessão home sweet home




sessão sem legenda: filmes aleatórios







diário da dor de cotovelo

Com pouca ou nenhuma vontade de escrever. Me esforçando. Mais ou menos. Debruçado na autópsia de um texto-imagem pronto, das antigas, meio nonsense, meio difícil de ressuscitar. Daqueles textos que só publicando para desapegar de vez.

Aliás, o projeto seria grandioso se a vontade permitisse. 3 livros de uma vez só: esse da autópsia; o dos Cacos; e um de fotografias. Que as musas intervenham.

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Helena foi localizada (para quem não sabe, o volume 3 da obra completa de Machado, esquecida na sede da Receita Federal). Quem localizou foi uma simpática e prestativa funcionária da segurança. Não satisfeita em não encontrar o dito cujo nos achados e perdidos, a moça perquiriu em todos os guichês de atendimento. Acabou por encontrar. No fundo da gaveta. De um dentre as dezenas de atendentes. Meu sorriso de regozijo ao receber o livro iluminou o lugar. A moça retribuiu o sorriso com a mesma intensidade. Sintonias espontâneas & ocasionais. Eternamente grato.

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Parei parte em que o pai de Helena revela o mistério implacável e cruel ao imaturo Estácio. Machado arrasa. Para sempre.

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Vi ontem o filme Yves Saint Laurent. Bonzinho, sim. Mas não me pegou. Parecia filme de encomenda. Apesar do maravilhoso & glamouroso do mundo da moda parisiense e da genialidade indubitável da personagem. Anti-herói, pra mim, tem que ser mesmo muito radical.

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Preparando com todo cuidado & delicadeza o prato para o almoço de amanhã. Com amigos queridos, frequentes, constantes. Os de sempre. Faltam ainda as folhas da salada e as rosas. Muitas rosas amarelas.

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Ouvindo Tracy Capmann de um tempo que felizmente não retornará. Ouvindo rock’n’roll pedrada eterno na Kiss FM. Ouvindo clássicos selecionados anunciados pela voz fantasmagórica de Mário Garófalo.

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Questões contemporâneas: é possível discutir relação afetiva quase sólida com a troca de 4 frases no whatsapp?

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Só mesmo recorrendo a Macalé em horas de sofrimento insuportável: é impossível levar um barco sem temporais e suportar a vida como um momento além do cais.

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Desculpem, leitores, o sentimentalismo & as inevitáveis rimas adjetivas & adverbiais.

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End game again?

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Reset and restart.