quarta-feira, 11 de setembro de 2013

pandora



Pandora é uma cadela labrador. Adora passear, tanto à pé quanto de carro. É dócil, simpática e sociável, faz amizade com todo mundo. É gentil, obediente, educada, feliz - se fosse gente - gente-boa. Aos 12 anos já superou uma infecção mortal, uma quase cegueira, convive com uma doença provocada por parasitas, com a dispasia nas 4 patas e osteofitose (bico de papagaio) na lombar, que dificulta terrivelmente sua mobilidade.

Mesmo assim, mantém 24 horas o astral lá em cima. 24 horas pronta para a farra.

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Tenho notado os efeitos da idade nela. Mais lenta e comedida, menos impetuosa, mais cansada, movimentando-se menos, às vezes fazendo as necessidades fora do lugar, dormindo demais - dentre outros sintomas.

Primeiro foram as caminhadas. Mesmo com as dores na coluna e articulações ela adorava andar longas distâncias. Porém, nos últimos meses nosso trajeto encurta-se dia a dia. De 3 quadras para apenas o final da rua. Até que na semana passada ela empacou. Recusou-se a passar do portão.

Depois apareceu uma espécie de transgressão obstinada. Logo ela, que sempre foi educadíssima nesse sentido - passava batido por qualquer iguaria largada na calçada, no gramado ou na beira da água - fossem restos de comida, peixes ou pássaros em decomposição, lama ou outros dejetos duvidosos. De repente surgiu o hábito novo: eu não podia descuidar da coleira que ela deliciava-se com a porcaria.

Por último foi a água. Ela sempre amou nadar. Se pudesse ela passava o dia inteiro buscando gravetos ou bolinhas de tênis atiradas no fundo. Sábado passado, um dia lindo, eu a levei à beira do lago. Estranhei a falta de empolgação dela. Só para me agradar ela molhou os pés, deitou-se uns instantes, sacudiu-se e foi se secar no gramado. Olhando firme, como que pedindo para ir embora.

Quando os weimaranes dos vizinhos aproximaram ela levantou-se irritada e saiu andando, sem me esperar, no rumo de casa.

Nós os humanos rimos inconsequentes: senilidade, caduquice, essas coisas.

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De uns 3 dias para cá a coisa piorou. Nos poucos momentos em que permanecia acordada ela não desgrudava de mim. Choramingava. Respirava forte, ofegante. Gania sem motivo visível, aparentemente atacada por alguma dor insuportável.

Liguei para a acupunturista. Dei aspirina, dipirona, floral, essência de flor de laranjeira. Acendi incenso e defumador, conversei com espíritos ancestrais, mentalizei boas energias. Até reiki eu arrisquei para aliviar o desespero dela.

Funcionou. Até hoje de madrugada.

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Eram 4 da manhã. Acordei com a respiração ofegante dela. Que acelerava-se. Até tornar-se um chiado. Depois ronco. Ela estava com um lado do corpo todo molhado de saliva. Gania. Agitava as patas para levantar-se. As traseiras paralisadas. O corpo não obedecia o comando.

Entrei em pânico. Socorrê-la (como?) - ou procurar na internet alguma clínica veterinária com plantão 24 horas. Carreguei-a para o jardim. Ela firmou-se. Mas andava pelo gramado desvairada, em círculos, passando por cima das plantas, tropeçando na mangueira, em galhos secos, topando nas árvores e nos cactos espinhentos.

Quando eu a conduzia para perto da casa ela encostava-se e seguia a caminhada obstinada rente às paredes, batendo-se nos vasos, pilastras como se aqueles obstáculos não existissem.

Toda essa cena acontecia em ritmo acelerado, muita energia desprendida, ela cega, alucinada.

Pensei que ela ia morrer.

Carreguei-a até o carro e segui para o plantão veterinário, do outro lado da cidade.

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Ela ainda gania acomodada no porta-malas, mas com menos frequência. Parei o carro em um descampado no meio do caminho. Ela desceu. Farejou o ambiente, as moitas de capim, o orvalho. Andou, dessa vez com direção. Pensei: ao invés de cruzar a cidade até o veterinário, por que não levá-la para um lugarzinho que ela gosta, mais ou menos próximo, à beira do lago?

O dia amanhecia e estava lindo. Ela não entrou na água. Ficou por ali andando, respirando o ar frio, reconhecendo o espaço, o mundo, recompondo-se internamente. Permanecemos lá por volta de uma hora. Quando eu a coloquei no carro de novo ela estava mais calma. Quase serena.

Em casa comeu dose dupla da ração e dormiu o resto da manhã.

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Só à tarde ela foi examinada pela veterinária que a acompanha há alguns anos. Diagnóstico: convulsão. Pode ocorrer em alguns cães com a idade dela. Ou por intoxicação. Ou ainda por causa da doença parasitária. Ou tudo junto.

Tomará remédio tarja-preta o resto da vida. Ganhará peso. Ficará lenta, sonolenta, apática, desenergizada. Perderá talvez o gosto pelas caminhadas, pela água, pelas pessoas, pelos brinquedos dela, por mim.

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É triste demais. Mas é preciso resignar-me. Não me deixar abater. Ter disposição e dedicação para tornar a vida dela nem que seja um reflexo do que foi durante os últimos 12 anos. Manter (é piegas e apelativo, eu sei) viva a chama de vitalidade dela. E preservar a alegria de viver que ela sempre se esmerou em me ensinar.

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