segunda-feira, 29 de abril de 2013

domingo, 28 de abril de 2013

é tudo verdade (versão 2)

Era um churrasco. Sábado à tarde. À beira da piscina, moderna, com hidromassagem e uma espécie de mesa de granito no centro, circundada por banquinhos azulejados e separada da borda por um espelho d'água de imperceptíveis 20 cm de profundidade, onde bebia-se e conversava-se sem sair da água.

Tudo era muito: a euforia, as carnes, o samba, a cerveja, as cores das bermudas e das sungas, o céu azul sem nuvens, a beleza.

Na piscina estavam as pessoas mais animadas. Dentre elas o Giovanni-Michele, recém-chegado ao Brasil (por causa da crise europeia), tão lindo quanto um modelo de capa de revista gay. E que, nas palavras do anfitrião, ao nos apresentar, estava solteiro e queria muito conhecer meu trabalho.

Eu tinha saído de uma reunião. Por isso as roupas e o sapato inadequados ao evento vespertino. Sentei-me à borda da piscina. Tomado de uma inspiração apolínea, minha fala fluía na mesma proporção em que caía a água da cascata. Com o auxílio dos dionisíacos goles de cerveja.

Eu explicava detalhes dos novos projetos. Separado de Giovanni-Michele pelo espelho d'água. Giovanni-Michele correspondia à minha empolgação. Interessou-se pelos desdobramentos econômicos e sociais. Sugeriu até uma possível segunda etapa, a ser apresentada para uma ONG cultural italiana.

Sublinarmente (só mesmo na minha mente carente) enquanto o papo rolava, eu criava um subtexto afetivo ao interesse, os olhares e sorrisos polidos de Giovanni-Michele. 10 minutos após o início de nossa primeira conversa eu já nos via, os dois, velhinhos, cachecóis de lã enrolados no pescoço e bonés xadrezes com abas para proteger as orelhas, cultivando vinhedos em uma idílica paisagem toscana.

Quando, iludido pela miragem acima, e que fisgar Giovanni-Lucca era questão de minutos, avancei para encher-lhe o copo de cerveja. Eu me desequilibrei, e tchibum - enfiei o pé, até a canela, no líquido invisível do espelho dágua.

Além do estrago do sapato novo, o final feliz do filminho romântico que minha cabeça rodava, com trilha sonora de Ennio Moricone, esvaiu-se junto com a fumaça do cigarro que Giovanni-Michele acendeu, certamente para reprimir o riso.

Recolhi as migalhas de dignidade flutuando no espelho dágua, tirei o pé da água, pisquei para Giovanni-Michele (como se aquilo tivesse sido uma performance para quebrar o gelo), enchi o copo de cerveja dele, engoli de um gole o resto que estava na lata, pedi licença e fui atrás do dono da casa, para que me emprestasse um chinelo.

Depois, durante o resto do churrasco, mantive distância segura da piscina e evitei olhar na direção onde supunha estar Giovanni-Michele. Qualquer gargalhada que ouvia, de qualquer direção que viesse, me reportava de imediato ao incidente trágico que protelou por mais 100 anos a minha solteirice.

sábado, 27 de abril de 2013

só acontece comigo

Cheguei agora de um jantar daqueles de filme. Convidados chiquérrimos nos vários ambientes, vinho espumante e cool jazz tocado por uma banda quase invisível entre as folhagens, muitas luzes, mesas espalhadas pela varanda e jardim.

Em uma espécie de ilha, no centro da piscina iluminada de azul-escuro havia mesas. Em uma delas sentavam-se alguns amigos, animados, quebrando um pouco a formalidade da festa.

Dentre eles um francês que, segundo o dono da casa, estava solteiro e queria muito me conhecer.

Comecei uma conversa fiada, eu à margem da piscina e eles na tal ilha, separados por uns 50 cm de água. A conversa foi se animando, eu me empolgando na proporção direta dos olhares, dos sorrisos e do interesse crescente do francês.

Quando, iludido pela crença que fisgar Jean-Michel era questão de minutos, calculei errado o bote. Gesticulei mais do que devia, dei um passo em falso, perdi o equilíbrio e tchibum - engoli a frase pelo meio, mergulhei pateticamente e espirrei água em todo mundo da ilha.

Me ergui na borda da piscina, pisquei para Jean-Michel (como tivesse ensaiadao a cena), concluí a frase, pedi licença e fui atrás do dono da casa, para que me emprestasse uma toalha, bermuda, camiseta e sandália havaiana e me tirasse dali, o mais rápida e discretamente possível.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

gata

4 lugares preferidos para as sonecas da gata:

Enquanto trabalho:
1. Sobre os envelopes contendo a papelada dos projetos em andamento.
2. Sobre o scanner de mesa.
3. Entre o teclado e a tela do computador.

Quando estou ausente:
4. Sobre o forno micro-ondas, na bancada da cozinha (descobri pelos vestígios de pêlos marrons e cinzentos boiando no leite depois de aquecido).

...

Logo que acordo, abro a porta da cozinha. Ela escapole para o quintal sem nem fazer o desjejum. Só volta quando ouve o barulho das panelas - hora do almoço - ou das portas da casa sendo fechadas - sinal inequívoco de que sairei.

Hoje eu descobri o que ela faz, por dias e dias, no período da manhã. Fica no fundo do quintal, na cerca, tocaiando 2 filhotes de sagui que ensaiam o equilíbrio, de um lado para outro, no arame.

Nem quero imaginar o que acontecerá se um deles tropeçar e cair...

terça-feira, 23 de abril de 2013

avós (10)

Padrinho fumou até os quase 80 anos. Depois que meu pai morreu de câncer, ele procurou um médico. Diagnosticou-se o efisema pulmonar. Viveu mais uns 6 anos. Outra vez só com o salário-mínimo do INPS, foi morar com tia Clêu, única e última filha, o genro e as netas, minhas primas.

Deixou de tingir o cabelo, passou a usar um boné pavoroso, com a marca de fabricante de produtos esportivos ou de universidade americana, tênis surrados descombinando com a calça social marrom claro e camisa de gola abotoada até o pescoço.

Parou de implicar com minha mãe. Vinha uma vez por semana e passava a tarde sentado com ela, na varanda, tentando compreender a doutrina do espiritismo, rememorando o passado, chupando tangerinas ou carambolas. Os dois evitando diplomaticamente lembranças espinhosas.

Eu o vi algumas vezes. Indo embora ao final de tarde, caminhando na direção da parada de ônibus: vacilante, abatido, pouco mais que a sombra da altivez, da elegância e do orgulho do patriarca que ditava as regras de conduta para toda a família.

Tendo feito tudo (ou quase tudo) o que quis na vida, acho que morreu em paz.



sábado, 20 de abril de 2013

(parêntesis)

Estranhei o blog estar bombando nos últimos dias. Tipo 150, 170 acessos diários, quando o pico não passava de 5. A ilusão egoica do escritor piscava intermitentemente junto com o contador de acessos no rodapé da página: caraca, velho, finalmente as pessoas estão te reconhecendo. De uma hora para outra arrebatando uma horda de leitores!

Doce e passageira ilusão. Desvendei o mistério. Ou, pelo menos, encontrei o fio da meada: um site-spam (isso existe?) americano (ao invés dos grotescos russos vendedores de relógios falsificados) abduziu meu endereço eletrônico e o replica para deus e o mundo.

Ainda não entendi a razão, mas o site abdutor (que oferece desde remédios para perder a barriga até encontros virtuais com garotas sexy vestidas com biquinis da minha avó) fez quase 500 internautas americanos incautos acessarem minhas incríveis, surpreendentes e maravilhosas Histórias Desagradáveis.

Imagino a reação desses 500 novos leitores quando se deparam, na tela, ao invés da pílula para aumentar o pênis, com a esquisita história dos avós. Seria como a reação de Champolion diante dos hieroglifos da Pedra da Roseta? Ou Édipo diante do enigma da Esfinge? Vai que um dentre eles descarte o merchandising duvidoso e decifre 2 ou 3 metáforas...




sexta-feira, 19 de abril de 2013

gata


Será que Zildinha anda seguindo o blog?

Pois na postagem do dia 18/04, sobre o susto que o gatão branco deu nela, quando escrevi "entrou no escritório e pulou para trás dos livros", o trecho era a parte ficcional da anedota. Não é que a malandra, sem mais nem menos, materializou a cena? E ela nunca tinha feito isso antes.

avós (9)

Padrinho e Mãe-Tiana eram os joviais avós paternos. Padrinho, por vaidade: o nome era Olindo, mas detestava o cargo de avô. Mãe-Tiana, por corruptela: Prateana/Tiana por ter nascido no Prata, Zona da Mata de Minas Gerais; Mãe (ao invés de vó) pelas mesmas razões de Padrinho.

Parece trocadilho: o avô Olindo era lindo. Alto, corpulento, traços romanos e fulminantes olhos azuis-esverdeados. Músico, ainda por cima. Com esses atributos, e outros que posso inferir, era o próprio Don Juan. Mãe-Tiana sofria para trazê-lo na linha. Nem sempre conseguia.

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Padrinho fez na vida de tudo um pouco. Andou foragido por razões de política no Estado Novo. Tocou em bandinha de coreto. Aventurou-se com a família no meio da floresta boliviana, trabalhando em construção da estrada-de-ferro. Migrou para São Paulo e estabeleceu comércio no Sumaré.

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Alvoroçou-se com a notícia da construção de Brasília e nem pensou duas vezes: fechou as portas do armazém, juntou a família e a tralha e ganhou muito dinheiro vendendo mantimentos, panelas, ferramentas, velas, botinas, querosene, etc para os candangos do Núcleo Bandeirante, W3 Sul, Taguatinga e Gama. Com o pomposo nome de Casa Prateana.

Perdeu tudo do mesmo jeito que ganhou. Aposentou-se pelo INPS, virou motorista de táxi e jogador profissional de damas e dominó.

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Depois que Mãe-Tiana morreu, Padrinho, com mais de 70 anos, vendeu de novo o que tinha, comprou um barraco no Gama e foi morar com Hecilda, gorducha e risonha, 18 anos de idade. Viveram felizes por uns 5 anos.

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Aos 80 anos nasceu-lhe o primeiro bisneto. Insistiu que a criança perpetuasse o nome Olindo. O pedido virou piada familiar. Ateu até o leito de morte, Padrinho não se conformou com o desrespeito nem com o nome de arcanjo dado ao menino em batismo.

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Patriarca destronado, meio Rei Lear, meio Simão Bacamarte, o último projeto de Padrinho foi reformar a Língua Portuguesa. Cheguei a ler algumas anotações e a carta de encaminhamento do projeto a ser realizado, para a Academia Brasileira de Letras. Sem saber, Padrinho reinventava rudimentos de um esquisito Esperanto.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

gata

A brincadeira da gata pular a janela acabou de maneira traumática. Há algumas noites ela subiu na mesa, caminhou pelo teclado, pulou a janela, deu a volta pela casa, como sempre faz, 2 vezes seguidas. 

Na terceira vez ouvi aquele barulho peculiar de briga de gatos.

O gatão branco, manso e espaçoso, andarilho das redondezas, estava escondido na moita de gravatás. Zildinha não viu e pulou bem na direção dele. Então ele apareceu na frente dela, gaiato - surpresa! convidando para brincar. Ela quase morreu de susto. Zuniu feito um corisco em volta da casa, entrou no escritório e pulou para trás dos livros. Passou o resto da noite escondida lá.

Agora, quando eu escancaro a janela, ela olha de longe, fareja o ar com o focinho de veludo, dá a volta e se aninha atrás da porta, o mais afastada possível de outro possível sobressalto.

kazuo ohno - the written face


quarta-feira, 17 de abril de 2013

avós (8) - errata

Retifico dois trechos do texto anterior. O primeiro, por justiça à memória das personagens. O segundo, por pura retórica:

1. Sobre os bisavós Pai-Totó e Mariquinha: onde se lê: "Encarnavam o arquétipo do casal de caipiras nos filmes de Mazzaropi", leia-se: "Transitavam entre o arquétipo dos veredeiros das histórias de Guimarães Rosa e o estereótipo de caipiras nos filmes de Mazzaropi".

2. Sobre a manta de linho bordada por bisavó Mariquinha: onde se lê: "Tenho até hoje uma manta de linho, com bainha em em bico de renda, bordada por bisavó Mariquinha, para ser usada no meu batizado", leia-se: "Tenho até hoje uma manta de linho, com bainha em em bico de renda, bordada por bisavó Mariquinha, para ser usada no meu batizado. Recentemente eu flagrei a faxineira enxugando a louça com ela. Pensou que era um pano de prato".

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De agora em diante falarei de gente viva. Por isso deverei trocar nomes, omitir passagens, entortar fatos. Ludibriar o texto de forma a não expor certos acontecimentos. Transformar o cascalhoso do real em areia dourada de ficções.

terça-feira, 16 de abril de 2013

avós (7)

Do lado paterno eu conheci 3 bisavós. E toda a parentada. Quando meu irmão caçula foi levado para ser batizado em uma cidade chamada Carneirinhos.

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O bisavô João era filho do sinhô e da sinhá de escravos da história anterior. Era casado pela segunda vez com Dona Mariana, que não era minha bisavó, pois meu avô Olindo era o primogênito do primeiro casamento.

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Reais ou projeções misturadas, não importa, as lembranças que tenho da bisavó Mariquinha e de bisavô Pai-Totó (pais de Mãetiana, minha avó paterna) são muito nítidas. Encarnavam o arquétipo do casal de caipiras nos filmes de Mazzaropi.

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Moravam em uma casa grande, na roça. A casa foi construída de forma a acompanhar o aclive de um morro. Por isso, um lado era suspenso por pilares de madeira. No vão formado sob a casa dormiam porcos, cabritos, galinhas, cachorros sarnentos, máquinas agrícolas e uma bicicleta enferrujada. Foi onde peguei carrapatos e o meu primeiro bicho-de-pé.

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Tenho até hoje uma manta de linho, com bainha em em bico de renda, bordada por bisavó Mariquinha, para ser usada no meu batizado.



domingo, 14 de abril de 2013

avós (6)

Dependurado junto do avô Manoel de Beda, na sala pouco frequentada, até há uns anos atrás encontrava-se, também colorida e emoldurada em prata, a fotografia dos trisavós paternos. O trisavô de fraque e gravata-borboleta torta. A trisavó, um vestido preto, tipo corpete, a gola de renda branca fechada até o pescoço, mal desenhada. Defeitos certamente causados pela adulteração artística dos retoques.

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Contam que os trisavós eram ricos e poderosos. Donos de fazendas, mina de ouro e escravos. Contam que a mina de ouro ainda está lá, no sopé de alguma montanha em Minas Gerais, a boca lacrada e intocada, aguardando o desfecho de insolúveis pendengas inventariais que atravessam as gerações, os séculos, a história.

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Contam que o trisavô era um sinhô mau, cruel, impiedoso e mulherengo. Teve casos e deve ter feito filhos em dezenas de escravas. Inclusive na mucama da trisavó.

A trisavó não ficava atrás no que se refere a ruindade. Vingativa e ciumenta, mandou o feitor furar os olhos da mucama.

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Quando tio Aprígio (irmão do avô paterno Olindo) contou a história da trisavó a meu pai moribundo,  ele, que tanto se orgulhava da ascendência, levantou-se da cama, foi até a sala e retirou o retrato da parede. Nem minha mãe sabe onde o retrato dos trisavós foi parar.

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Dos trisavós paternos eu não herdei as fazendas, os escravos, a mina de ouro. Nem o sobrenome ou a soberba. Serei eu um descendente direto dos Marques ou trisneto torto de alguma bastardice?

terceiro e último desejo

Que venha lento como o orvalho. Que encha a alma de relâmpagos e tempestades. Que traga desertos grudados na pele e nos cabelos. Que seja doce e exótico e arrebate. Que resvale nos silêncios das palavras.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

gata

Agora a moda de Zildinha é subir na mesa do escritório, andar sobre o teclado do computador, armar o bote e saltar pela janela que dá para o jardim. Ontem, a janela estava fechada. Ela bateu a cara no vidro. Como nos desenhos-animados. Porém, a chique manteve a pose. Nenhum miado, nenhum pio, nenhum gemido. Disfarçou o vexame. Ficou parada, em pé sobre a mesa e apoiada no vidro. Simulando, sei lá, uma nova brincadeira. Fingiu que não ouviu a minha gargalhada. Desceu à francesa. Desapareceu.

De repente eu a vejo sobre o beiral, do lado de fora da janela ainda fechada. Olhando pra mim. Desafiadora. Só pra me mostrar que um reles vidro não é obstáculo para o ir-e-vir em seu reino-território.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

avós (5)

Do avô materno eu sei pouco. Era calado e nunca levantou a mão nem a voz para os filhos.

Conduzia o carro puxado por 2 parelhas de bois pelo sertão, viagens que duravam meses, levando arroz, milho, feijão e couro de Goiás e trazendo sal para as vacas, arame farpado para as cercas, tijolos de marmelada de Poços de Caldas e cortes de vestidos para a avó Maria de Beda e para as meninas. Apesar de bucólica, poética, idílica, a vida devia ser dura.

Só vi um retrato do avô Manoel, apelidado Beda. Foto antiga ampliada, retocada e colorida por outro Manoel, prenome Zé. Emoldurada em prata, dependurada em um canto de uma sala onde quase ninguém visita.

O olhar era do avô Beda era bovino de tão doce. Expressão secular de cansaço. Usava um bigode espesso, castanho, bem penteado. Além da testa alta encimada por topete estranho. Acredito que o exagero do bigode e a altura do topete não era uso do avô roceiro. Provavelmente foram os retoques artísticos ao retrato desbotado, feitos por Zé Manoel.

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(Zé Manoel é fotógrafo e marido de tia Cleu, cujas histórias virão quando chegar a vez dos tios).

quarta-feira, 10 de abril de 2013

avós (4)

(Esqueci de dizer: completava a vestimenta de Maria Preta uma saia comprida, muito desbotada, um casaquinho de lã puído e um forro de guarda-chuva que ela usava sobre os ombros, como estola. Daí talvez a imagem do morcego).

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O nome verdadeiro de Maria Preta era Maria de Mônica. Mônica era a mãe escrava. O sinhô de Mônica era bom. Quando morreu, deixou no testamento a alforria, o lote e uns cobres para Mônica e as filhas. Os cobres eram poucos. O terreno valia quase nada. Por necessidade, elas foram vendendo frações. Até restar só o casebre e um quintalzinho, quase todo ocupado por um algodoeiro velho cujos galhos entravam pela janela.

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Rosalina morreu uma morte horrível. Minha mãe conta: Maria Preta tinha ido à casa da avó Maria de Beda pedir emprestado uma xícara de arroz para fazer o almoço. De repente, ouvem os gritos. Rosalina foi tocar fogo em nas bananeiras no fundo do quintal, despejando o querosene da lamparina. O querosene derramou na roupa dela e o fogo se alastrou.

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terça-feira, 9 de abril de 2013

avós (3)

Maria Preta e Rosalina ajudaram a criar minha mãe. Mãe e filha moravam em um casebre de 2 cômodos, feito de taipa, piso de terra batida, na rua em que morava a avó Maria de Beda.

Os catres eram um colchão de palha forrado de chita, sobre o jirau. Maria Preta era negra, tinha pra lá de 100 anos de idade era filha de escravos. Rosalina parecia também muito velha.

Maria Preta era magra e frágil. Vivia encolhida, como um louva-a-deus, um morcego, um filhotinho de gato, com os olhos brilhantes, no canto mais enfumaçado da cozinha, acocorada na parte mais baixa do fogão à lenha. Usava um lenço amarrado na cabeça, de onde escapava a ponta de uma trança branca.

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Até hoje eu sinto a mão gelada, os dedos finos e enrugados dela quando eu pedia a bênção. Também sinto o gosto do café ralo adoçado com rapadura que ela me servia, em uma xícara esmaltada verde-escuro desbeiçada.

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Eu não me lembro mais das histórias que Maria Preta me contava. A única coisa que eu me lembro era da pele preta, fosca, quase que só cobrindo a ossatura angulosa da cabeça, das gengivas desdentadas quando ria e do branco dos olhos que me olhavam com tanta intensidade através da fumaça.

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Quando minha mãe e tias eram pequenas, elas iam com Maria Preta e Rosalina juntar lenha no cerrado. Maria Preta e Rosalina traziam grandes feixes de lenha. Faziam feixezinhos leves de gravetos para as meninas que, imitando as pretas, também os traziam à cabeça, orgulhosas.

Nessas incursões as meninas aprendiam os nomes, as qualidadades e as propriedades das folhas, das flores, das raízes e das cascas das árvores. Acho que era a oportunidade de Maria Preta transmitir fundamentos e preceitos dos orixás ou inquices disfarçados em fitoterapia, botânica e catolicismo fervoroso.


segunda-feira, 8 de abril de 2013

avós (2)

Quando caducou, a avó Maria de Beda veio morar conosco. Tinha um quarto só para ela, com uma cômoda de 6 gavetas. Sobre a cômoda ficava uma grande mala de couro escura, forrada por dentro com seda azul-claro e um bolso interno na tampa. Dentro da mala, entre as anáguas e os vestidos de passear, ela guardava uma infinidade de santinhos, medalhinhas, moedas, terços arrebentados, escapulários, envelopes de cartas, balas toffee (que tia Madalena trazia de Goiânia), notas verdes, azuis e alaranjadas de dinheiro antigo, trouxinhas de jornal onde ela embrulhava os restos de cabelo do pente, o bagaço de fumo de rolo já mascado e balas meio chupadas.

Os dedos da avó Maria de Beda eram fortes e nodosos. Ela nos beliscava com as unhas dos polegares grossas como cascos. Até arrancar a pele e muitas lágrimas.

A avó Maria de Beda andava encurvada e com os braços para frente, como que apoiando-se em um bordão invisível. Acordava muito cedo para arrancar mato no quintal, subia as escadas de gatinhas, servia café com pão de queijo para o Cid Moreira, do Jornal Nacional, era apaixonada pelo Mário Gomes e pelo Tarcísio Meira, mas queria mesmo era se casar com o Zorro.

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Eu era o neto mais obediente. O mais aplicado. Desenhava castelos, coqueiros, Jesus e anjos esvoaçando entre as nuvens, que ela guardava na mala. Comprava no armazém do Seu Antônio pedaços do fumo de rolo que ela gostava. Ou escolhia as linhas de cores mais bonitas do armarinho para ela fazer crochê.

Da avó Maria de Beda eu herdei as pálpebras caídas, a ruga de expressão na boca, o cabelo encarapinhado, a mania de guardar quinquilharias e a facilidade de transitar sem maiores problemas entre a fantasia e a realidade.

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avós (1)

Minha avó materna chamava-se Maria Felizaura. Mais conhecida por Maria de Beda, não por causa do Venerável, mas pela alcunha do marido. Que se chamava Manoel, conduzia carros de bois pelo sertão entre Minas Gerais e Goiás, e morreu de doença de chagas, antes do meu nascimento.

A avó Maria de Beda morava sozinha em um casarão com piso de tábuas mal enceradas, teias de aranha no teto sem forro e uma maçaneta de cristal azul na porta de entrada. O quintal era um mundo fantástico e cheio de perigos, tais como as altíssimas mangueiras, os porcos no chiqueiro ou escorregar no limo e as tábuas podres do poço e da latrina.

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A avó Maria de Beda tinha uma irmã mais nova chamada Tia Cecília. Moravam com tia Cecília dois filhos de criação, com problemas mentais, que eu não entendia serem tão velhos e banguelos e ao mesmo tempo filhos dela: um era o Antenor; o outro era Bobo. Bobo tinha uma excrescência enorme no pescoço, chamada de papo. Meu pai me ensinou que o nome correto da doença de Bobo era bócio.

No quintal da casa de Tia Cecília tinha um rego d'água onde funcionava um pequeno monjolo para descascar arroz, um pé de carambola e muito coquinho babão, cujas castanhas Antenor e Bobo quebravam pra gente.

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domingo, 7 de abril de 2013

segundo desejo

Eu queria tipo um filtro que separasse as pérolas do joio que eu insisto em misturar e um aplicativo para bloquear lembranças constrangedoras que vêm em horas impróprias.

sexta-feira, 5 de abril de 2013

tormented

(de: http://dtxmcclain.tumblr.com/)

nova aventura da gata

Há uma árvore em frente à janela onde trabalho. Na árvore, um ninho. De vez em quando encontro metades de cascas de ovo ao pé da árvore. Pouco maiores que a unha do dedo mindinho.

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Gosto de trabalhar com a janela aberta. Sentir o vento, o frio, ouvir os barulhos e os silêncios, a tranquilidade da noite.

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Uma grande e antiga coruja buraqueira faz ponto no meu jardim noturno. Passa horas pousada na grade ou no pilar do portão.

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Zildinha, a gata, deu de subir na mesa. Passeia pelo teclado, desinteressa-se por um ou outro objeto, fareja o copo d'água. Quando penso que vai me dar atenção - zapt! pula a janela e desaparece no escuro.

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Eu estava entretido em uma polêmica internauta idiota quando ouvi um grito horripilante rasgando a noite do jardim. Abri a cortina. 

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O grito tinha sido da coruja. Os olhos-de-brasa-amarela eram da gata. Pelo que entendi, Zildinha e a coruja disputavam a posse do ninho. A coruja deve ter dado um rasante, quem sabe uma beliscada na orelha da gata. A gata, provavelmente, uma unhada na cara da coruja. As duas lá, no meio da grama, avolumadas de raiva, olho fuzilando olho. A gata indiferente ao meu chamado protetor. A coruja, aos meus "xôs!".

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Empate técnico. Feliz do pássaro que teve o ninho intacto e a prole protegida. Sabe-se lá até quando.

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(Minutos depois a gata roça os meus pés sob a cadeira. Ronronando como se fosse o bicho mais manso e bonzinho do mundo. Pronta para outro salto no primitivo).

quinta-feira, 4 de abril de 2013

primeiro desejo

O que eu queria mesmo era um banho quente, café com leite e pão com ovo, e o corpo do meu amorzinho colado ao meu ensaiando o requebro de uma rumba.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

best-seller

Eu gosto de ler best-sellers. Daqueles que você não consegue largar. Que você vira noite e dia do final de semana lendo, sem comer nem dormir nem sair de casa, nada, até chegar ao último (e quase sempre frustrante) capítulo.

Mas isso não me incomoda. Nem os personagens estereotipados, inconsistentes, descritos com meia-dúzia de adjetivos. Nem a linguagem repleta de clichês, lugares-comuns, a tradução quase sempre pífia. Nem as ações que servem para qualquer situação. O que me admira é a técnica. Ou, melhor, a fórmula secreta que só os americanos (os ingleses em segundo lugar e uma exceção espanhola) dominam, para laçar o leitor.

Não importa o gênrero: suspense, policial, romance, histórico, religioso, ficção científica. Se tiver tudo junto, melhor ainda! Basta que a leitura flua. E, claro, a trama tenha um mínimo de coerência e poucos ou imperceptíveis furos.

Ressalto: coerente não significa plausível. Viajar no tempo a tempo de participar dos últimos momentos antes da crucificação de Cristo é um argumento coerente em sua implausibilidade. Porém cair de um helicóptero, em plena noite, no deserto, justo sobre uma tenda de beduínos, é abusar da boa vontade e do QI de qualquer leitor.

Desde que sirvam para preservar o suspense ou o fio da narrativa, os argumentos absurdos são admissíveis. Do tipo: porque o mocinho e a mocinha resolveram transar mesmo tendo sido avisados que o inimigo russo já subia as escadas do hotel decadente em um subúrbio de Barcelona? resposta: para inserir uma cena de sexo. Ou: porque os israelenses não tiraram logo no início do livro o raio-x da cabeça da hipotética messias para comprovar que não havia microchips instalados em seu cérebro? resposta: porque se fizessem isso, não haveria best-seller.

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Há uma maldição para o autor de best-seller. Será autor de obra única. Pois todo o resto que produzir, não passará de cópia, de repetição do sucesso original. Exemplo: há algum tempo li um recordista de vendagem sobre os mistérios que envolviam a Mona Lisa, a máfia, a Igreja Católica e os templários (lembrou, Leitor?).

Engatei na segunda obra do autor, lançada na rabeira do sucesso do primeiro. Uma droga! A mesma fórmula, a mesma estrutura, os mesmos personagens com nomes, cor de cabelo e profissões trocados. A diferença entre eles? no primeiro, era a autenticidade de um quadro. No segundo, a autencidade das provas da existência de vida extraterrestre em um meteoro. Bah!

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Estou lendo um best-seller romântico. Ambientado na Inglaterra e na Tailãndia. Em 2 planos temporais: durante a Segunda Guerra e nos tempos atuais. De autora inglesa (já escrevi sobre isso, até os nomes dos autores de best-sellers são únicos: Pâmela Glyn, Bertha Ruck, Mirtle Reed). Bem escrito. Para um público específico da categoria. Mulheres. De meia idade e solitárias. As personagens femininas são fortes, marcantes, belas, politizadas, algumas conturbadas. As masculinas, ao contrário, são confusos, fracos, dominados pelas mulheres e subliminar ou explicitamente feminilizados.

Acredita que o herói, até a quarta parte do livro, acreditava ser gay (inclusive tem várias experiências). Inexplicavelmente, casa-se com a mocinha por obrigação, vira hetero e protagoniza cenas calientes de sexo com uma ninfeta-amante talilandesa?

Tá bom, eu não vou criticar, eu não sou público-alvo. Mesmo assim não consigo parar de ler. Um, dois capítulos por dia. Estou louco de curiosidade pelo que acontecerá com os personagens atuais (a pianista e o descendente do lorde ex-gay) e com os antigos - o lorde, a esposa mal-amada, a amante e o único másculo jardineiro Bill, caracterizado com pinceladadas do amante de Lady Chatterley e que, provavelmente, será o responsável pelo desfecho da trama.

Quando acabar, eu prometo não contar o final.

terça-feira, 2 de abril de 2013

pandora, o cão

Pandora não foi escolhida. Escolheu. Depois de uma tarde inteira de buscas. Toda feliz. Fofa como uma gravura de folhinha. Abanando o rabo-vírgula, sorridente como só os labradores conseguem. Segura de abandonar para sempre os 11 irmãos e irmãs da ninhada e começar uma vida nova e estranha e cheia de novidades.

A primeira noite foi quase fatal. Pais de primeira viagem, nós dormíamos no mezanino de uma casa de adultos, arquitetura pós-moderna, grandes vãos e nenhuma proteção. Foi colocada aos pés da cama, em uma caixa de papelão. Curiosa, no meio da noite ela virou a caixa e aventurou-se na exploração do ambiente. Despencou do andar de cima até o subsolo. Deslocou o ombro.

O veterinário incompetente completou a tragédia. Ficou manca para sempre.

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Educadíssima, ela, uma leide. Desde pequena respeita qualquer comando. O máximo de travessura foi arrancar plantas de vasos. Remexer os irresistíveis restos de frango do lixo. Ou, na época do divórcio, cavar expressivos e dramáticos buracos no cascalho do jardim-de-inverno.

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Adora passear à pé ou de carro. Nadar. Garrafas pet. Buscar bastões e bolas de tênis. Refestelar-se na grama ou no barro. Morre de medo de substantivos compostos: guarda-chuvas, corujas buraqueiras e quero-queros. Come abacate, banana, mamão, tangerina, jabuticaba, biscoitos pet. Lambe o leite derramado, os farelos de pão. Rói coquinhos ou galhos secos. Ossos, os dentes não permitem mais.

Ao contrário da gata e do dono, é a sociabilidade em pessoa. Extrovertida, simpática, curte crianças e idosos, faz sala para as visitas, participa ativamente de encontros e reuniões, olha nos olhos, não reclama de banho. Só falta falar.

Sangue-bom total. A gente se entende pelo olhar. Não faz mal nem a uma mosca. Não persegue os micos ou as lagartixas como as primas vizinhas. Aceitou a presença e as minhas atenções exageradas - e até ficou amiga da gata Zildinha. Deixa a bichana brincar com o seu rabo, beber de sua água. Quando viajo, descobri por acaso, elas dormem juntas, aninhadas, compartilhando a ausência e a solidão.

Únicos e imperdoáveis defeitos: roubar o pote de manteiga do café da manhã ocasionalmente esquecido na bancada. Ou, de vez em quando, ainda espalhar o lixo à procura de restos.

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Com a idade, vieram as complicações. Passou por poucas e boas. O ombro mal ajambrado virou artrose. Disseminada para as 4 patas. Dolorosos bicos-de-papagaio lombares. Uma piometra quase fatal e consequente extirpação do útero. Doenças endêmicas incuráveis, queda de pêlo, infecções, perebas. Teve uma hora que até pensei em sacrificar.

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Abdico de qualquer pudor ao afirmar: a branquela é um exemplo de autodeterminação. Superou todas as crises, resistiu aos exames, tratamentos, cirurgia, diagnósticos ruins, dores constantes nas articulações, à presença da morte.

Claro que, velhinha, ressente-se. Dorme muito depois da natação ou da caminhada. Choraminga às vezes de desconforto, anda com dificuldade, não se vexa ao manifestar carência. Mas continua linda. Mantém o porte, a pose nobre, a segurança, a altivez, a determinação, a vontade de aproveitar cada momento da existência.

Um dia, quem sabe, eu aprenderei com ela.

zildinha, a gata

Ela nasceu em berço de ouro. Presenteada por um príncipe da Pérsia. Filha de pai e mãe com pedigree e árvore genealógica remontante ao medievo. Raça pura, tipicamente caseira, cor rara, nome e sobrenome de socialaite, a mais linda da ninhada.

Ou seja, tinha tudo para ser uma gata très chic, peluda, macia, de companhia, daquelas preguiçosas que se arqueiam em câmera lenta, roçam e se entrelaçam nas pernas do dono, ronronando, manhosas. Daquelas dormem no colo, na poltrona ao lado ou aos pés, sobre o tapete do escritório, enquanto o dono lê ou escreve. Uma gata delicada, que gostasse de carinho e cafuné. Enfim, uma gata de artista.

No entanto, inexplicavelmente, como se diz em Portugal, ela deu para o torto. Nunca vi gata mais tosca.

Arredia ao extremo. Só aceita carinho na hora de comer, e olhe lá. Quando eu consigo pegá-la desprevenida, ela se liberta à unha. Sacode o pêlo, com asco da carícia indesejada. Nunca atende quando eu a chamo. Sempre um graveto, uma folha seca grudada no pêlo, um tufo emaranhado. Escovar? Pago os pecados, ascendo ao menos a um degrau do karma a cada tentativa.

Rejeita a água colocada em seu próprio vasilhame de inox para beber a água babada do cão. Não dá a mínima para o arranhador, para os brinquedos, as bolinhas, os guizos. Só pula para a minha cama de madrugada, e se enrosca bem afastada, o mais longe possível, para estar próxima e ao mesmo tempo protegida de qualquer contato.

Ao invés do tapete do escritório, o território dela é o quintal e o telhado. Passa a manhã inteira emaranhada nas moitas, camuflada nas touceiras, tocaiando pássaros. Também à noite, tentando deslocar as telhas para alcançar os morcegos. É raro o dia que não me presenteia com um pardal, um bem-te-vi, um joão-de-barro, um anu dos grandes ou um beija-flor. Também lagartixas, baratas, besouros e muitas mariposas.

Às vezes, muito raro, ela fica carente. Me segue pra todo lado, me olha com o olhar mais sapeca e inocente do mundo. Propõe brincadeiras, deita-se de barriga pra cima, facilita ser pegada. Aí eu dou o troco. Finjo que não vejo. Passo batido, ao lado dela, sem dar bola. Então ela fica à espreita, disfarçando, sem-graça, rabo-de-olho.

É óbvio que eu não resisto, o carente-mor. Pego a bichinha no colo, afio as unhas no tapete com ela, entro debaixo da mesa, puxo-a pelo rabo, corro atrás da bolinha de papel, aperto-a no colo, seguro pelo pescoço, coço-lhe os ouvidos, os bigodes, deixo-a me lamber e mordiscar os dedos. Uma farra total.

Que não dura nem 5 minutos. Pois cai a ficha dela. E ela retoma a fleuma, a adultice, a independência e a superioridade. Geralmente com uma unhada mais incisiva. Abandona a brincadeira, como se tivesse sido um lapso, um ato falho freudiano. Como se nunca tivesse acontecido. E nunca fosse acontecer de novo.

Imagina minha cara de tacho.

Mas se não fosse assim talvez eu não gostasse tanto. Não seria ela um espelho do dono?

segunda-feira, 1 de abril de 2013

cinema domiciliar

Passei o domingo diante da tela. Pausando as tarefas, os projetos, as responsabilidades. Permitindo-me a entrega à sensação e à emoção. Enfrentando a culpa injustificada pelo ócio, pela vagabundagem, pelo fazer nada, o laissez-faire.

Vendo filmes. Entre soluços descontrolados, crítica ao mesmo tempo política e emotiva, atenção média ou tédio avassalador. Entre surpresas (o filme mais incrível dos últimos tempos) e decepções (qual a razão daquilo ter-se tornado clássico?).

Antes do almoço foi a vez do Beasts of the southern wild (Indomável sonhadora, em tradução equivocada e comercial). Independentemente da crítica (uso e abuso de temática infantil). Beasts..., é grandioso. Imagens pré-apocalípticas, futuristas, contundentes, surreais, tão poéticas e políticas. Texto e subtexto essencial (literatura sulista de Faulkner, Flannery O'Connor, Alice Walker, etc), iterpretação irrepreensível da menina, do pai, das crtianças, dos demais coadjuvantes. Uma América, americanos aos quais nunca antes eu tinha visto ou estava acostumado. Êxtase (e choro) durante quase todas as cenas.

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Depois de ver o Beasts..., convenhamos, leitor, a gente fica exigente.

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Em seguida, a produção nacional-global Gonzaga, de pai para filho (Breno Silveira, 2011), sobre a vida do rei do baião Luiz Gonzaga e de seu filho Gonzaguinha. Filme bem-feito, bem dirigido, com atuações surpreendentes (e arrancadoras de lágrimas furtivas) de Chambinho do Acordeão (Nivaldo da Costa Filho), como Luiz Gonzaga jovem, Adélio Lima (Gonzaga velho) e o convincente Júlio Andrade (como Gonzaguinha. Apesar do formato televisivo, do final teledramático, de apelo popular previsível das produções globais, o filme é delicado e arrebatador.

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Depois do almoço e do cochilo foi a vez do clássico requentado À boute de souffle (Acossado, Jean Luc Godard, 1959). Li na Wikipedia: Foi o primeiro filme de Godard. Foi rodado em poucas semanas. Aproveitou-se dos imporovisos e da espontaneidade e talento dos atores e da beleza das locações em uma Paris de cartão postal. Jean Seberg faz a linda e charmosa mocinha americana controversa; o gostosão (que boca, que pernas!) Jean-Paul Belmondo faz o anti-herói. O filme me fez constatar que a nouvelle vague é chata. Para aguentar até o final insosso, só intercalando o joguinho no celular e as atualizações nas redes sociais.

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Intervalo: a gata trouxe na boca, aos meus pés, um pardal. Ao qual consegui salvar sem anular o brio da conquista da bichana.

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Por fim, o filme dinamarquês concorrente ao Oscar O amante da rainha (Nicolaj Arcel, 2012). Baseado em fatos históricos. Figurino e cenários impecáveis. Mas roteiro previsível. Que me perdoem a ignorância (ou prepoência), mas o filme é muito clichê. Desde a caracterização dos personagens (o rei louco, a rainha progressista, a madrasta má, as artimanhas da corte, o amante, entre idealista e oportunista) ao roteiro previsível e entediante do meio para o final - à canastrice (proposital no Acossados do bloco anterior, mas deslocada aqui). Contemporaneidade forçada, entretenimento.

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O cão sonha e ronca. A gata dorme entre as toalhas, no banheiro. Para concluir a páscoa cinematográfica experimentarei o trash nacional A fuga da mulher-gorila (Felipe Bragança e Marina Meliande), o cult político Hunger (Steve McQueen) ou quem sabe, um drama-comédia gls bem alienado, que me anestesie ou desencave novas lágrimas, soluços ou excitamentos durante as poucas horas entre o fim do domingo e as primeiras horas da segunda-feira.