quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

diário gerúndio doméstico

beliscando as bochechas & puxando os bigodes & dando tapinhas carinhosos nas costelas da cadela. observando as acrobacias dos micos. espalhando citronela & exterminando os mosquitos das moitas. furando paredes. revisando instalações elétricas & hidráulicas. posicionando baldes sob as goteiras. ouvindo os jambos cor-de-rosa se esborracharem no chão.

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rebobinando filmes velhos & pornografia dos anos 70. variando de temas. retomando temas antigos. resgatando almas & escombros do limbo. investindo em projetos fadados ao descaso. elaborando o cardápio espiritual para o novo milênio. contornando de longe picos eufóricos & cânions & vales & similares. ouvindo o galo cantar & não sabendo onde. reprogramando atividades.

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eliminando itens da lista de afazeres. organizando os livros. emoldurando trabalhos. lendo sobre teatro & plutarco & daniel galera. namorando sob os raios de xangô & os ventos da tempestade de iansã. tomando barravento. correndo & nadando & malhando nas horas vagas. tomando chimarrão & vitamina c. ouvindo dorival caymmi & me derretendo em lágrimas: é doce morrer no mar, nas ondas verdes do mar.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

frase para encerrar a noite com chave de ouro

Qualquer coisa na escrita me sugere o prazer da caça: no vazio da página se ocultam infinitos sobressaltos e espantos.

(do diário do caçador Arcanjo Baleiro - Mia Couto, A confissão da Leoa)

curiosidades do mundo antigo 2

Esparta era a principal cidade-estado da Lacedemônia, também conhecida como Lacônia.
 
O objetivo principal do legislador Licurgo era estabelecer na Lacedemônia um governo popular, onde o pequeno tivesse tanta autoriadade quanto o grande. Uma das formas de obter a igualdade era acabar com a cobiça, a acumulação de riquezas e as consequentes diferenças sociais - substituindo as moedas de ouro por moedas de ferro, estas de grande peso e grosseira massa, e valor quase nenhum.

No entanto, com as palavras e a fala, Licurgo impôs o contrário. Ensinava-se aos meninos espartanos a falar de sorte que sua linguagem tivesse malícia misturada de graça e prazer, e que em poucas palavras compreendesse muita substância.

Aprendia-se a utilizar poucas palavras, nem pesadas nem afetadas, para construir muito graves e boas sentenças. Submetidas a longos silêncios, as crianças aprendiam a serem breves e agudas nas respostas.

Para os espartanos (isso é maravilhoso!), a intemperança de falar demais torna a palavra vã, tola e vazia de sentido.

Nas palavras de Plutarco: os Lacônios, em sua maneira de falar, não usam de muita linguagem, mas tocam muito bem no ponto e se fazem entender muito bem pelos ouvintes.

Só me resta então implorar aos deuses: afastai a prolixidade e fazei de mim pelo menos um pouquinho lacônico.



(de: Plutarco, As vidas dos homens ilustres. A vida de Licurgo. Os trechos em itálico são transcrições literais da tradução do francês).

curiosidades do mundo antigo - Esparta


Não foi à toa que, por séculos, os espartanos foram guerreiros mais temíveis do mundo antigo. O legislador Licurgo (cerca de 881 antes de Cristo) idealizou em Esparta um sistema de governo onde o ouro não circulava, os bens e terras eram compartilhados entre nobres e plebeus e as crianças, independentemente de sua origem, eram criadas comunitariamente de forma extremamente rigorosa.  A seguir, algumas observações (de curiosas a horripilantes, interditas e politicamente incorretíssimas) sobre o sistema educacional espartano:

Logo que nasciam as crianças espartanas eram afastadas dos pais e criadas e educadas coletivamente. Se fosse bela, bem formada de membros e robusta, era destinado à criança uma verba governamental para sua educação. Porém, se lhes parecia feia, disforme ou franzina, mandavam atirá-la a um precipício.

Os bebês eram lavados com vinho. Servia para experimentar-lhes a compleição e a têmpera. Para os espartanos, as crianças sujeitas à epilepsia, ou então catarrosas e doentias não resistiam ao banho de vinho e definhavam e caíam em langor. Ao contrário, as saudáveis tornavam-se mais rijas e mais fortes.

Quanto às letras, aprendiam somente o necessário. Ou seja, todo o aprendizado consistia em bem obedecer, suportar o trabalho e obter vitória em combate. Dormiam em esteiras fabricadas por eles mesmos, tanto no inverno quanto no verão.

Eram ensinados a furtar e a roubar. Se fossem descobertos, eram açoitadas em público. Certa vez um garoto furtou um raposinho e o escondeu debaixo da túnica. O bicho se debateu e esperneou, dilacerando com as unhas e os dentes o ventre e o peito do menino. Que não soltou um gemido nem largou o bicho. O pobre menino morreu ali mesmo, debaixo de uma mesa da sala de convívio dos adultos, das unhadas, da infecção e da hemorragia causada pelo bicho.

Depois dos 12 anos os meninos ganhavam uma túnica de corte simples por ano. Por isso viviam sujos e ensebados. Tomavam banho em certos dias do ano, quando os faziam gozar dessa doçura.

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A partir dos 12 anos eram frequentados assiduamente por amantes, ou seja, rapazes mais galhardos e mais gentis. Também os velhos não lhes davam sossego.

Os amantes respondiam por seus amados menores de idade perante a sociedade (imputava-se aos amantes a boa ou má opinião que se concebia dos meninos que haviam tomado para amar).  Por exemplo, em um exercício de luta, o garoto que estava perdendo deixou escapar da boca um grito que lhe revelou a coragem frouxa e falida. Imediatamente seu amante foi multado pelas autoridades.

Até as mulheres honestas e virtuosas também podiam amar suas meninas.

Os amados ou amadas podiam ser compartilhados entre os amantes, sem sentimento de posse ou ciúme. Ao contrário, era isso um começo de mútua amizade entre os que amavam no mesmo lugar; e procuravam juntos [os diversos amantes] por todos os meios de que podiam dispor, fazer que o menino que amavam em comum fosse o mais gentil e o melhor condicionado de todos os outros.

(Plutarco, As vidas dos homens ilustres. A vida de Licurgo. Os trechos em itálico são transcrições literais da tradução).

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

passado, memória, lembranças

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As pessoas gostam de dizer que cada momento da vida nos depara uma bifurcação no caminho: sento na escrivaninha em vez de ir até a janela, onde talvez teria sido atingido por uma tijolada, ou em vez de ir passear no parque, onde teria encontrado uma mulher linda, um ladrão, um homem vendendo seguros ou ninguém; se estou indo para o mercadinho, posso virar nessa rua e não na outra, e tudo vai mudar para sempre. Mas você já imaginou se a mesma coisa for verdadeira na outra direção? Indo para trás, também há escolhas a fazer a cada passo do caminho, e cada item revivido na memória é apenas o primeiro elo de uma nova corrente mnemônica, e cada nova corrente mnemônica recria um passado diferente, construindo um álbum de fotos diferente, desembrulhando outra caixa de tesouros esquecidos - um passado diferente, que deve por força ser o passado de um presente diferente, de um futuro diferente, de uma pessoa diferente.

(Sam Savage, Cartas de um escritor solitário)

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

sobre sincronias da segunda-feira

Por causa do calor eu dormi com as portas e janelas da casa abertas. Mal amanheceu, o sol forte atravessou a cortina das pálpebras e dissipou as sombras das asas que esvoaçavam nas paredes e no teto dos sonhos. Acordei com grasnados (a primeira imagem que me veio foi a do corvo no beiral da janela de Poe) e um rebuliço no quarto: a gata pulou na cama. Presa na boca, e se debatendo, uma fêmea de bem-te-vi. Difícil fazer a gata largar a caça que, meio troncha, finalmente conseguiu voar para o jardim.

2. Levantei-me quase me arrastando. No meio do ritual (escovar os dentes, ferver água para o café, servir ração, trocar a água e dar os remédios ao cão), o rádio-relógio despertou: Cauby cantou Roberto, baixinho, no meu ouvido: olha você tem todas as coisas que um dia eu sonhei pra mim.

3. Depois do café a segunda-feira se povoou de projetos impetuosos: conferir o extrato bancário, escrever à prima, marcar consulta com o dermatologista, concluir o texto sobre heróis, desenhar um roteiro de viagem improvável, limpar as arandelas e organizar a estante dos livros. Desisti de correr, em razão de resquícios de ressaca e do sol escaldante já às 8 da manhã. Deitei-me de novo e esperei a taquicardia passar.

4. Deitado, tentei focar um pensamento difuso sobre (de novo) sincronias: a) no conto de Flannery O'Connor lido ontem (O calafrio constante), o escritor moribundo revê nas manchas de umidade do gesso do teto do quarto de infância uma ave de aspecto feroz e asas abertas, com um pingente atravessado no bico e outros menores que pendiam do que era o rabo e das asas; b) em Cartas de um escritor solitário, de Sam Savage, enquanto ouvia o barulho das gaivotas, no mesmo gesso manchado do teto do quarto-e-sala o personagem-redator via o contorno da Grã-Bretanha, junto com várias manchas que pareciam surpreendentemente couves-flores gigantes, e acima da janela encontrou um grande sapo com uma raquete de tênis na boca; c) as asas farfalhantes dos morcegos e mariposas do sonho e as asas castanhas do pássaro se debatendo na boca da gata. Felizmente não distingui nada nas manchas de infiltração na laje do meu quarto. Melhor levantar e tomar banho.

5. Coloquei um CD velho e chiento de Shirley Horn cantando Miles Davis antes de entrar no chuveiro. Concluí debaixo da água gelada: existir é o entretecer de infinitas coincidências, quase sempre banais, quase sempre forçadas.

domingo, 6 de janeiro de 2013

caixinha-de-perguntas

exercício para responder nos próximos dias:

1. se você fosse partir numa jornada espiritual, iria para onde? fazer o quê?
2. quem são seus heróis da vida real?
3. sem pensar nos custos, que tipo de festa você daria, e onde?
4. que acontecimento do presente, passado ou futuro você gostaria de testemunhar?
5. o que você mudaria na sua personalidade?

auto-des-ajuda

prefixo latino de negação do dia:
desapegar. desconstruir.
desequilibrar. desestabilizar. desenraizar.
despudorar.
descomplicar.

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dos sentidos:
ouvir o resfolegar dos vivos e os suspiros dos mortos.
enxergar o inusitado das nuvens, dos cacos de porcelana pintada, da pelagem dos bichos e das asas dos insetos.

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dupla intenção:
varrer as teias de aranha das vigas das convicções.
lavar as paredes da alma e mudar os móveis de lugar.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

texto para deletar

Fotografo no quase-escuro da casa o contorno granulado das coisas. Das quais me desfarei qualquer hora dessas. No primeiro plano, o par de vasos de porcelana preta. O tapete com motivos andinos. O globo espelhado. As orquídeas do último encontro anônimo.

Só percebi, muito depois, ao fundo de uma das fotos, emoldurado no quadrado de luz da porta do banheiro, o contorno branco do teu corpo desfocado, decapitado, espectral. Banhando-se, urinando ou se depilando, sei lá. Concentrado em teu sorriso póstumo, todo o escárnio de nossa existência comum.

auto-ajuda básica

do gerúndio: revisando. reavaliando. reposicionando.

do futuro certo ou incerto: projetar para além da sombra. viajar sem bússola.

do infinitivo: explorar. imergir. fruir. admirar.

a cinza dos pretéritos espalhadas pelo vento.

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do i-ching: a viga mestra vergada.

momento de grande transformação. ou total estagnação.

palavras-consolo: beleza. graça. simplicidade.

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tesão de existir: no verão. no inverno. nas fictícias primaveras e outonos dos céus sempre tão azuis dos trópicos.


persistência e paciência. para conduzir em segurança a nau nas tempestades. nos nevoeiros entre os rochedos. nas calmarias.

caramba, velho! auto-ajuda a essa altura do campeonato?