domingo, 28 de outubro de 2012

diário gerúndio da incapacidade

Batendo claras em neve para o recheio dos dias futuros. Afundando azeitonas no pântano das ervas finas & dos gozos mal sucedidos. Amassando fragmentos do discurso amoroso & pondo tudo a perder com a overdose de ditirambos.

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Entortando a ética & a moral para caber na forma. Cobrindo a mediocridade com papel-alumínio antes de levar ao fogo brando das vaidades. Envenenando o otimismo & a bem-aventurança com creme de leite. Reforçando o chocolate da sobremesa.

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Ouvindo Billie Holiday. Ouvindo o galo cantar às 2 da manhã.

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Jogando jogos duplos para adiar confrontos. Perdendo a rodada para Lady Macbeth. Gastando um dedo de prosa com a gueixa enquanto seu lobo não vem.

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Lendo Sylvia Plath para a gata no cio & para a cadela aleijada & para as ratazanas do banhado. Desligando Billie Holiday. Enfiando a cabeça no forno microondas antes do galo cantar pela terceira vez.

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Tomando um copo d'água. Tomando um banho frio. Pedindo aos deuses um pouco de malandragem & sonhos reveladores & sono reparador que dure até o alvorecer.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

novela

Nos primeiros capítulos, entre eles tudo era amores: jantares, presentes, olhares, flores, resorts, suítes de motel, luar e até um ciumento dia dos namorados.

Lá pela metade, os capítulos se espicharam e a paixão arrefeceu. Vieram os primeiros deslizes, as mentirinhas, as omissões e os mil vezes malditos telefonemas e mensagens sem retorno.

Na reta final, forjou-se a separação. Com expectativa de reconciliação. Para recuperar os índices de audiência.

No entanto, a última semana foi um fracasso. Apesar dos segredos bombásticos revelados (as maldades da malvada, a filha bastarda, a morte do bom moço, a operação para mudar de sexo, o golpe do baú, a bancarrota, o julgamento do inocente, etcétera) - apesar de tudo, a reconciliação prometida não aconteceu.

O fim chocho foi cada um para o seu lado. Sem festa, sem buquê, sem apoteose. Na última cena, em seu apartamento penumbroso, um ligava para o outro. O outro, à beira da piscina, só risos, música alta e gente bonita em volta. Olhava o mostrador do aparelho. Sorria um sorriso de escárnio. Deixava tocar até a bateria acabar.

O que tinha ligado olhava para a câmera. Como se dos pulsos cortados fosse esguichar no telespectador a falta de sentido de toda a dor, todo o sofrimento imputados e acumulados, capítulo a capítulo, até as cenas da próxima novela.




quarta-feira, 24 de outubro de 2012

diário

Chego bem cedo no trabalho. Para não ser obrigado a responder os bons dias e nem ouvir os comentários sobre a programação televisiva do final de semana. Coloco os fones de ouvido e me isolo na tela do computador. Só ouvindo Etta James para consertar o dia que mal começa.

Perdi o sono: dor-de-cabeça e câimbras noturnas que nunca tive (sinais da idade). Estresse e pensamentos repetitivos. Lembrança, na madrugada, de compromissos bobos. Sonhos com situações não resolvidas.

Marcas irreversíveis das eras: rugas nos cantos dos olhos; pele-de-galinha nas mãos e pescoço; vísceras inchando por dentro; desejo e libido anulados. Nem glúteos bem proporcionados, peitorais lisos na piscina, cortes de cabelo redesenhando pescoços – nada me tira do sério.

Bloqueio criativo. Escrevo lasso. Leio: teoria literária, vaidades, Onetti. Resgatei, da adolescência, as maravlihosas Metamorfoses, de Ovídio.

Na internet eu me especializo em aberrações. Desde comentários preconceitosos de leitores de jornais on-line sobre crimes e assassinatos até banalidades da vida das celebridades. Recolho amostras dos absurdos que o ser humano é capaz de fazer, pensar e se expressar.

Além disso, pesco exotismos. Ontem, li sobre um santuário de gorilas, no coração da África. Trechos do diário de Sontag. Epigramas do velho Cioran. Hoje vi paisagens que simulam pinturas. E uma baleia a imitar a voz humana. Depois ouvi Jeff Buckley. 

Preciso estudar inglês. Consertar o telhado da casa. Levar o cão ao veterinário. Cuidar das costas. Fazer acupuntura. Me inscrever no curso de gastronomia. Preparar o almoço da mamãe que faz 100 anos. Satisfazer instintos sublimados. Remodelar a construção das frases. Riscar pleonasmos. Maneirar nos clichês e nos vícios de linguagem. Preciso pedir ao doutor dose extra do elixir para suportar os dias que se acumulam.


(trecho de carta-e-mail a uma amiga)

terça-feira, 23 de outubro de 2012

mitológicas

Hoje eu atravessei as horas como se carregasse às costas um saco de pedregulhos colina acima.

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De tão entorpecido, servi iscas do meu fígado acebolado aos abutres, e nem doeu.

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Te perdi para sempre ao me virar (para ter certeza que era mesmo você que me seguia), antes que cruzássemos a saída de serviço da mansão dos mortos.

mitológicas

Hoje eu atravessei as horas como se carregasse às costas um saco de pedregulhos colina acima.

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De tão entorpecido, servi iscas do meu fígado acebolado aos abutres, e nem doeu.

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Te perdi para sempre ao me virar para ter certeza que era mesmo você, antes que cruzássemos a saída de serviço da mansão dos mortos.

sábado, 20 de outubro de 2012

mitológicas

A trilha estreita divide: de um lado o paredão de pedra. Do outro, o abismo.

No rochedo há górgonas pousadas nas cavidades. Ansiosas para serem encaradas. Mas não será meu o coração que elas transformarão em pedra.

Do outro lado o vazio, a queda, o vento, o mergulho, o fundo, o mais fundo. E no fim o escuro e o barulho da arrebentação nos arrecifes. Por sorte tatuei um par de asas nas minhas omoplatas.

Fecho os olhos. Sigo em frente. Passos de sonâmbulo. Sentidos amortecidos pela impossibilidade. Pernas e os braços envenenados pelo medo. Guiado pelos fogos-fátuos até o cão de três cabeças que vigia as minhas incertezas.

envy

(http://www.barryxball.com/)

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

diário do presente do indicativo

Retorno para a prateleira os romances de amor lidos pela metade. Leio contos & considerações filosóficas de outras datas & orgasmos múltiplos & vaidade & fraquezas dos deuses & vícios de segunda ordem na existência humana.

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Invoco & depois apago poemas chucros a Dionisos. Escando versos atonais, aos berros, com as bacantes. Canto desafinado: o banheiro é a igreja de todos os bêbados.

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Expurgo más intenções.  Ressuscito verbos & substantivos & adjetivos intravenosos.

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Ressurgem das cinzas personagens planos. Reescrevo o roteiro dos últimos capítulos da novelinha shakespereana, pouco digna do horário nobre. Ao tempo em que espero Átropos cortar o fio que Láquesis cardou e Cloto segurou (ou será o inverso?).

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Procuro pacotes turísticos promocionais alternativos. Mas para a viagem ao Hades são vendidas passagens somente de ida.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

ela (continuação)

Na maioria das vezes ela vinha depois que se apagavam as luzes: luminescência, quase impressão, sonho, somente, não fosse a coceira, a ardência, as erupções cutâneas dela consequentes, como já foi dito.

Mas também cabia de ela vir pelo cheiro. Era o aroma enjoativo dos jasmins e das damas-da-noite, obviamente noturnos, depois das luzes apagadas.

Em ocasiões raíssimas ela se manifestava durante o dia, no aroma que uma lufada repentina de vento fazia exalar da fileira de camélias plantadas na calçada até o refeitório, ao meio-dia. Também era ela quando os lençóis recém-trocados nas manhãs dos sábados, lavados com sabão ordinário, sem mais nem menos rescendiam a lavanda, quando, depois do almoço, nos recolhíamos para a sesta, e os amarotávamos com os pesos dos nossos corpos, ou os maculávamos com os cheiros do nosso suor, das salivas das nossas babas nas fronhas, dos nossos gozos, solitários ou clandestinamente compartilhados.

Ou ainda era ela no breu, no sândalo e na mirra que, sem mais nem menos, mesmo sendo a missa só às manhãs dos domingos, invadia o dormitório, e antecipava o pecado, ou a culpa decorrente dele, da transgressão, a condenação, o padecer e a absolvição - a mão gosmenta batendo no peito, minha culpa, nossa culpa, nossa tão grande culpa admitida - e era nada mais que a presença incontestável dela, o perfume dela, o gosto dela, ainda indistinto, porém indelélvel e inconfundível, nos nossos corpos.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

o espelho

(foto: Mila Petrillo)

O espectador senta-se diante do espelho. Ele vê, nítido, o quarto refletido no vidro. Ouve bolhas, cigarras, pios, música das estrelas. Mais nada. A não ser o espaço vazio onde ele deveria se refletir.

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De acordo com o Dicionário dos Símbolos, especular era observar o céu e os movimentos das estrelas com o auxílio de um espelho (speculum). Sidus (estrela) deu considerar, que significa olhar o conjunto das estrelas.

Então: diante do espelho o espectador especula. Para considerar. Será ele a silhueta difusa, aquele que não se vê no vidro? Ou será ele também a sequência de Outros, os personagens-Eu que surgem e ocupam o lugar do reflexo, do outro lado do espelho? Eles misturam-se. O espectador defronta-se com a impossibilidade de distinguir. E se embaça ao considerar sobre o espelho.

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O conto “O Espelho”, de Machado de Assis, é o ponto de partida para a instalação concebida por Simone Reis e Iain Mott. Trata-se de uma estória dentro da estória. Cinco senhores cinquentões especulam sobre a consistência da alma. Segundo Jacobina, que narra um episódio de seu passado, cada ser humano possui duas almas: uma que olha de dentro para fora e outra que olha de fora para dentro.

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O Espelho é um espetáculo. No sentido de Farsa, Teatro, Encenação. Ver e ver-se – e quem sabe, refletir-se por meio de símbolos, códigos, imagens, sons, palavras, disfarces articulados, no ator, performer, encenador – o Outro.

Também é circo, é burlesco. Pois apesar da tecnologia sofisticada, Iain Mott faz surgir os personagens-Eu criados por Simone Reis por meio do jogo de vidros/espelhos chamado pepper-ghost, utilizado no teatro inglês do século XIX e nas apresentações da mulher-gorila dos circos e dos parques de diversão.

(O burlesco e circense foram captados ereproduzidos com maestria na cenografia de Nelson Maravalhas).

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Por falar em Mulher-gorila...

Seriam os personagens-Eu de Simone Reis desdobramentos polidos, adestrados, educados, adequados, sobrepostos e humanizados da burlesca mulher-gorila que habita o espectador? O vidro-jaula que separa o espectador do monstro há de conter a fúria de Monga, caso falhe algum comando na casa das máquinas que funciona nos fundos da instalação?

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Ao adentrar a instalação, o espectador não deve cometer o mesmo erro da estouvada Alice, de Lewis Carroll, de impor as suas próprias razões ao aparente disparate que prevalece do outro lado do espelho.

Da mesma forma que rainhas, sufis, santas, divindades, cangurus salteadores, suicidas – e tantos outros personagens-Eu podem não ser apenas aquilo que aparentam, a lógica de O Espelho pode estar disposta em camadas e mais camadas de i-lógica.

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Ao invés do espectador perguntar ao espelho (como a madrasta má): “existe alguém mais bonita do que eu?”, são os personagens-Eu questionam a vaidade, os valores, os medos, os rompantes, a sanidade mental do espectador. São eles que perguntam: “você acha que eu sou louca?” “Você me acha bonita?”

O Espelho é puro teatrinho. Brincadeira de criança. Jogo ao qual Simone Reis e Iain Mott convidam o espectador a participar. O espectador não é mais um dos cinquentões do conto de Machado. É criança a transformar a realidade palpável: usa a coroa de cartolina e papel laminado da rainha, da santa; fuma o charuto-de-alface do magnata; veste o cobertor velho virado em manto sagrado; percute as castanholas-chocalho de bebê; disfarça-se com óculos, nariz e bigode postiço; atira com revólveres de espoleta e provoca suicídios, assassinatos, golpes de estado, revoluções.

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Em O Espelho fica evidente a maturidade da atriz e performer Simone Reis. Ao compartilhar a direção com Iain Mott, combinam-se o arrebatamento e a fleuma com resultado surpreendente. As contradições aparentes são recobertas por uma camada delicada de poesia. Quase luz. Quase aura.

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Zé Celso Martinez coloca Simone Reis no patamar das cômicas-zen Regina Casé e Dercy Gonçalves: O espectador-eu ampliaria a lista. Com os nomes das eternas juradas da tevê brasileira, referenciais estéticos e antifilosóficos com quem Simone Reis certamente aprendeu, diante de outra tela/espelho: Elke Maravilha; Aracy de Almeida; Wilza Karla; Márcia de Windsor; Maria Alcina. Cada uma segurando um lírio branco (ou uma rosa vermelha ou amarela, de plástico) distribuída pelo rabugento Pedro de Lara.

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Para concluir, o espectador pode recorrer ao sufismo e ao Tao: o espelho é o atributo da rainha. O homem se utiliza do homem como espelho.

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(O Espelho é uma instalação teatral mostrada na Galeria de Artes Van Gogh, em Sobradinho, de 21 de setembro a 21 de outubro, e no Foyer do Teatro Newton Rossi, em Ceilândia, de 26 de Outubro a 26 de Novembro).