segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

história de natal - parte 1

Dezembro inteiro era só festa. O povo da roça começava a chegar uma semana antes do natal. Os muito velhos, os mais velhos e as crianças. Geralmente ficavam até bem depois do ano-novo. Traziam todo tipo de mantimento: feijão novo em saco de estopa; dúzias de ovos enrolados em palha de milho seca; pequi, jurubeba, jabuticaba, palmito, guariroba, milho verde; rapadura, queijo fresco, queijo curado; pamonha, curau; frangos, leitoa, até cabrito vivos para sacrificar na véspera.

A cozinha virava um espaço comunitário: dia e noite mulheres amamentando, depenando frangos, descascando réstias de alho, mexendo doce de abóbora, de mamão, de figo, de leite no fogão; assando bolo, biscoito, brevidade, lavando e secando a louça, servindo o almoço em gamelas, pratos e canecas esmaltados, coando inesgotáveis bules de café, chá de losna para a má digestão dos velhos, de quebra-pedra para as complicações menstruais ou de camomila, erva-doce ou capim cidereira para as cólicas dos bebês.


segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

mais sobre sincronicidade

Vejo um filme sobre uma árvore, perda, crianças, família. Chego em casa, leio no blog Escolhas um texto sobre árvore, perda, crianças, família.

domingo, 16 de dezembro de 2012

diário gerúndio erudito

interpretando sinais divinos nas minhas vísceras expostas. implorando clemência aos estagiários do juízo final. sacrificando pombas-rolas aos numes. desconfiando da previsibilidade dos áugures. perorando sozinho na madrugada. aplainando a fúria dos espíritos beligerantes. postergando a carnificina dos inocentes.

...

brandindo o tirso. seguindo de longe o séquito das mênades para não ser esquartejado. sentando à direita da rainha das amazonas. banqueteando até cair de bêbado. sendo arrastado pelos eunucos. sendo expulso do forrobodó pré-socrático. catando cavaco na sarjeta. encontrando afeto na alcateia dos superdotados. cavalgando o centauro cinquentão.

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vestindo a toga sem nada por baixo. caçando confusão aos sete ventos. sequestrando princesas e jogando charme para principezinhos emancipados. me precavendo para não levar à socapa uma chifrada & uma chave-de-braço & um soco no queixo & uma estocada à altura do fígado ou baço. me segurando no corrimão para não rolar sangrando escadaria abaixo.

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ouvindo siouxsie & iggy pop & outras canções do último apocalipse. estremecendo com o baticum na casa do vizinho. tomando chimarrão. comendo arroz com linguiça. limpando o salão. cutucando a ferida mal cicatrizada. roendo semente de sucupira. desamargando a alma. espirrando secreções maléficas & fluidos negativos.

...

existindo em câmera lenta.


sincronicidade ou coincidência


Para driblar a insônia na madrugada eu li dois contos. Escolha aleatória nos livros da cabeceira. No de Flannery O'Connor (A vida que você salva pode ser a sua), um vagabundo sem um dos braços aparece na fazenda miserável onde vivem a velha desdentada e sua filha com problemas mentais. Depois de dar o golpe do baú casando-se com a filha (um anjo de Deus), ele conserta e se apossa do carro da velha e de 27,5 dólares. Na viagem de lua-de-mel (no calhambeque consertado), ele abandona a esposa na primeira birosca de beira-de-estrada. Sozinho, dirigindo com o cotoco do braço apoiado na janela, dá carona a um menino caipira que levava uma mala de papelão.

Em seguida "Sabonete", um conto curto de Juan Carlos Onetti. O cara está de férias. Dirige pela autoestrada deserta. Dá carona a alguém de sexo indefinido, que passa a ser chamado de Ele/Ela, parado na beira da estrada, carregando uma mala preta.

Tanto o garoto de Flannery quanto a personagem enigmática de Onetti estão parados na beira da estrada e não pediam carona. O garoto de Flannery perde a paciência com o discurso moralista do vagabundo. Xinga-lhe a mãe e desce com o carro ainda em movimento. O/A de Onetti fica. Torna-se objeto de curiosidade, fascínio e paixão do cara que lhe deu carona, que prefere evitar a descobrir a verdadeira identidade sexual do caroneiro, guardada na mala preta, trancada debaixo da cama, no quarto do chalé das férias.

O sono veio depois da leitura. Com pesadelos. O corpo esquartejado, o meu e ao mesmo tempo o de um afeto antigo, os pedaços guardados em sacos plásticos, cuidadosamente arrumados junto com rascunhos e manuscritos, em uma mala preta, de papelão, forrada por dentro de organza vagabunda, abandonada na beira da estrada.

samba-canção da exumação

Ao invés de transformar a casa em templo para cultuar a ausência eu tirei tuas fotos dos porta-retratos, queimei teus bilhetes, cartões apaixonados do início, comprovantes de pagamento e as faturas pagas dos cartões de crédito e da conta conjunta, juntei os presentes, as lembrancinhas, os teus ternos, sapatos, cintos, perfumes, as tuas camisas, gravatas, meias e cuecas do armário, enfiei tudo em sacos plásticos, daqueles pretos, reforçados - como se exumasse os teus restos mortais - para doar, amanhã mesmo, ao bazar beneficente de natal. 

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

abolerado

Depois que você saiu eu perdi o sono. Quando dormi, lá pelas 3 da madrugada, vieram os pesadelos: de perseguição, de objetivos inalcançáveis, de flutuação, de personagens mutantes. Daqueles sonhos que a gente acorda exausto.

O dia se resumiu aos milhares de minutos mal digeridos grudando no céu-da-boca. Na espera do melhor momento para te telefonar.

No fim da tarde, calhou de Aretha Franklin cantar no rádio algo como: "nenhuma dor, nenhuma lágrima depois que você me deixou". Aumentei o volume ao máximo e me derreti de chorar.

As entranhas reviraram quando te vi na praça de alimentação. O coração pulsava como se um alien fosse romper da caixa torácica. A pele era toda florezinhas arrepiadas brotadas dos poros.

Por falar em flores, esqueci os copos-de-leite, idênticos aos de Frida Kahlo, no banco traseiro do carro.

Amanhã sem falta eu recolherei os farrapos de discernimento e te olharei nos olhos e te perguntarei, na bucha, o quanto ainda você quer ver sangrar em mim.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

visita

Comprei mini-pizzas. Coloquei a coca zero no freezer. Dei ração e água aos bichos. Varri os tufos de pêlo do cão espalhados pela casa. Recolhi as roupas do varal. Tomei banho, fiz a barba, escovei os dentes e gargarejei com cepacol. Em exatos 30 minutos. O tempo da visita chegar.

Depois que a visita chegou, gastei mais 30 minutos para reduzir os batimentos cardíacos. Esforço enorme para desengasgar a voz e concatenar as palavras sem gaguejar. Para dar sentido às frases. Para encolher o riso de felicidade idiota que me rasgava a cara de orelha a orelha.

A pizza esturricou no forno. A coca zero congelou. Os pêlos do cão grudaram na roupa escura da visita. Cuidei para aparentar naturalidade. Suprimi comentários íntimos e lembranças. Para não impor à visita o constrangimento da minha saudade.

Falamos de bichos e de aparelhos eletrônicos. Da quantidade de meses que não nos víamos. De reformas e de projetos de vida. Do calor, da chuva, de falta de dinheiro. De doenças e de esportes radicais. Eu contei da viagem. A visita falou da velhice. Por mais de 3 horas nós arrodeamos diplomaticamente evitando o cerne.

Despediu-se com um abraço desajeitado. Eu, com um beijo que demorou a sair. Recendeu na sala, vindo de onde a visita sentou-se, misturado ao cheiro de cigarro, de grama cortada recente e de bicho, o perfume inconfundível dos dias passados que, pelo não dito e subentendido, eu tanto quis reviverem.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

mais sobre televisão

imagem de http://dtxmcclain.tumblr.com/
Hoje me xingaram de tudo quanto foi nome: velho rabugento, pessimista, careta, negativo, saudosista, nostálgico e retrógrado. Só porque ontem falei mal da televisão em geral e do programa da Regina Casé.

Até que o(a) xingador(a) tinha razão. Tenho reclamado, resmungado, arengado, criticado, apontado defeitos demais em tudo - no Cinema Nacional, na obra de Niemeyer, em quem escreve errado, nos programas da televisão e até na presidenta Dilma.

Nunca neguei. Sou da geração que aprendeu que a televisão (ou a religião?) era o ópio do povo. Ela promoveu a alienação utilizada pelo Dragão-Vampiro da Maldade para sugar a última gota do sangue do proletariado e engordar a pança da insaciável Classe Dominante.

Exagero. Mas eu nunca fui porta-voz da unanimidade. Muitas vezes, como diz o chavão, fui bandeira solitária contra a corrente. Nasci com olho virado, ou seja, olho que enxerga além do bom das coisas. O típico fleumático da homeopatia. O depressivo da psiquiatria. O inconveniente dos eventos sociais. O chato da cervejada da sexta-feira.

Talvez pela falta de costume, enxerguei isolado do contexto. Achei belo, intenso e profundo o que vi no programa do domingo: a passista sambando impecável com uma perna de prótese tatuada e de salto alto. O pai que inventou um mecanismo para jogar futebol com o filho com problemas de locomoção. A moça que não gosta de ser chamada de anã vestida de lantejoulas e sambando com o filho e o namorado. A simplicidade da arremessadora de disco agradecendo a deus por ter perdido a perna e com isso conseguido dar uma casa para a mãe. Gostei também da sinceirdade otimista da presidenta. Mesmo que exagerada. E da seriedade com que a diretora do Sarah conduz o trabalho no hospital.

O que me incomodou no programa Esquenta - e por extensão, na Televisão foi (e é) a massificação. A pasteurização. A carnavalização excessiva.

A televisão tem o poder de potencializar. De bombardear informação e imagem. Isso neutraliza, pulveriza qualquer boa intenção. E me deixa tonto, me exaspera, me hipnotiza, me dispersa e não me faz pensar. Definitivamente eu não tenho vocação para telespectador.

...

Agora só falta o texto para reclamar das festas natalinas. Depois eu prometo ficar de boca fechada.


segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

televisão

Não gosto de televisão. Acho barulhento, me dá tonteira, me suga a atenção, me hipnotiza. Porém, nos últimos dias, contra a vontade, tenho dedicado atenção à telinha.

Malhação eu vejo 2 vezes por semana na sala de espera do dentista: um almanaque de advertências e boas práticas para adolescentes. Depois, na cadeira, com a boca anestesiada, assisto a quase toda a novela de época com Camila Pitanga (não vou me dar ao trabalho de pesquisar o nome no Google), que trata de preconceitos sociais, raciais, sexuais e ensina história do Brasil em língua carioquesa. Durante a visita diária ao hospital eu vejo as polêmicas em tons pastéis da tímida e esforçada Fátima Bernardes. Domingo passado, durante um almoço com amigos, vimos Ellen Oléria cantar Milton Nascimento, no The Voice. Ontem assistimos ao Esquenta, de Regina Casé.

O Esquenta recria atualiza a Discoteca e o Cassino do Chacrinha. Só que, ao invés do caos antropofágico abelardo-barboseano, a confusão do Esquenta é organizada. Muito bem ensaiado, o público se mistura aos contrarregras, passistas, coristas, figurantes, jogadores de futebol, cantores de pop rock, pagodeiros, atletas paraolímpicos, pessoas com necessidades especiais, formandos, garis, a diretora do Sarah (para quem não conhece, um hospital que trata de pessoas com problemas graves de mobilidade), e a presidenta Dilma - sem ninguém esbarrar em ningúem.

O programa apregoava insistentemente o Brasil Melhor. O país onde a classe C (denominada "desfavorecidos" no governo anterior) aumentou o poder aquisitivo, tem acesso à saúde, educação, superou os preconceitos e participa democraticamente do programa. Várias vezes se disse, no ar, que o Brasil é lindo porque é o país da diversidade, o país que respeita a diferença, o país de um povo pra frente, feliz, que enfrenta miséria e a adversidade com pensamento positivo, um povo que minimiza seus problemas com pensamento positivo e alegria de viver.

Lindo. Emocionante. Contagiante. Quase me convenci.

Cheguei em casa incomodado. O programa colorido, que escrachava seriedades, dançante, pra-cima, tratando temas contundentes com requebro e jogo-de-cintura era mesmo o retrato do Brasil? Seria eu então um estrangeiro, de olhar míope, excessivamente crítico, pessimista, depressivo, olhar obscurecido, que só vê o lado negativo das coisas, que me recuso descer do pedestal para ligar o controle remoto e compartilhar aquela simplicidade da vida?

Daí eu li nas redes sociais a tradução perfeita para o meu estranhamento:

Fiquei pensando em como deve ser esse país maravilhoso, onde Regina Casé e Dilma Rousseff vivem. Deve ser legal morar num lugar assim, sem intolerância religiosa e no qual todos os problemas nascidos do convivio entre as diferenças são facilmente resolvidos com simpatia, otimismo e bom humor.

Ufa, Vera Gangorra, você sabe. Você também viu. Eu não estou doido. Eu não enxergo torto. Não basta samba no pé, flor no cabelo e sorriso na cara para superar limitações. O mundo não é só Rede Globo. Ginga, oba-oba, silicone, batidão e carnaval é essencial. Mas o sujeito que ignora o ladinho obscuro condena-se ao raso e à planura da telinha da existência.

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Revendo tanta informação absorvida em tempo tão reduzido (a plástica e o discurso irretocável da presidenta, a catarse beirando à paranóia da galera, o biquini de lantejoulas da moça portadora de nanismo, a arremessadora de discos que deu graças a deus por ter perdido uma perna, a malandragem do-bem dos pagodeiros, a moça sambando com uma perna de prótese e a brejeirice das bundas das mulatas) perdi o sono de madrugada. Aproveitei para ler Flannery O'Connor. Uma daquelas sábias que escreve com humor e crueza as desgraças da nossa existência sem travesti-las com a purpurina da hipocrisia.


domingo, 9 de dezembro de 2012

necrológio atrasado

Praça da Soberania

Todo mundo escreveu sobre Niemeyer no dia da sua morte. Toneladas de elogios.

Eu também escrevi. Um texto ranzinza, implicante, do-contra, chato, estraga-prazer, reclamão. Por isso eu o guardei nos rascunhos. Agora que o assunto deixou de ser manchete, aí vai.

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Niemeyer foi um dos grandes homens do século. Um herói brasileiro. Humanista. Comunista. Ateu. Sua arquitetura monumental é pura poesia de formas e linhas curvas. Trabalhou até os últimos momentos, aos quase 105 anos de existência. Levou a arquitetura brasileira, junto com o samba, a bossa-nova e o futebol para o resto do mundo admirar.

Isso foi dito e redito, escrito e reescrito, até a exaustão. No rádio. Na tevê. Na internet. Nas revistas e nos jornais: do Le Figaro ao Washington Post, do El País ao Corriere Della Sera, do Estadão ao Diário de São Raimundo Nonato.

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Meu pai foi candango. Veio trabalhar na construção de Brasília, em 1957. Na certa trabalhou em algum dos edifícios-monumentos de Niemeyer. Meu tio perdeu a mão em outro deles. Assim, sou daqueles brasilienses que, como disse um político daqui, respiro Niemeyer, tenho Niemeyer no sangue.

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100% das matérias que li (e ouvi) elogiavam a arquitetura poética de Niemeyer. Citando: Palácio da Alvorada, 3 Poderes, Catedral, Igreginha, em Brasília; Pampulha, em Belo Horizonte; Ministério da Educação (hoje Gustavo Capanema), no Rio de Janeiro; Edifício Copan em São Paulo; e inúmeros outros.

Mas todos calaram-se sobre as obras polêmicas. É natural. Os defeitos dos mortos são rapidamente esquecidos e as qualidades ressaltadas.

Admito, leitor: a partir daqui eu me exponho aos impropérios e ao apedrejamento estético-ideológico. Por entrar no campo do gosto pessoal.

Niemeyer (como humano que foi) também teve seus defeitos. Também criou obras de estética duvidosa. Ruins mesmo.

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Algumas obras polêmicas de Niemeyer têm sua graça. Transitam no grupo das grandes citadas acima. Exemplos? a Passarela do Samba, no limite do aceitável; o Museu da República, pesadão, mas integrado à paisagem sci-fi de Brasília: (Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado. Quando o mundo foi criado, foi preciso criar um homem especialmente  para aquele mundo. - Clarice Lispector); o Museu de Arte Contemporânea de Niterói, ferindo ou harmonizado com a paisagem; o Museu de Arte de Curitiba, olhão desajeitado, tanto por dentro quanto por fora, mas instigante.

No entanto, tem muita obra que, mesmo com boa vontade, pouca gente consegue defender: os "vulcões"do Centro Cultural de Le Havre, na França; a mão sangrando do Memorial da América Latina, em São Paulo; a "tulipa do cerrado" da Torre Digital; as linhas retas destoantes, hoje encobertas pelas árvores, do hotel em Ouro Preto; e basta.

(Ia me esquecendo do projeto da grotesca Praça da Soberania, contendo, dentre outros, o memorial dos presidentes e um obelisco de 100 metros que, graças a um grupo de arquitetos e cidadãos brasilienses, teve sua construção vetada).

Não que seja culpa do arquiteto. A fama internacional, a competência, a maestria, a produção incessante, as articulações políticas, o discurso, a respeitabilidade da idade, a ocasião, a demagogia, tudo foi motivo para Niemeyer projetar. Foi convidado pelos governantes e aceitou. Quem não aceitaria?

Mas, em se tratando de obra pública, de monumento para a posteridade, de patrimônio histórico, a hegemonia Niemeyer não se justifica. Por que sempre ele? não se deveria consultar antes especialistas? trazer a discussão a público? chamar gente nova? promover concursos, como o próprio, junto com Lúcio Costa ganharam para construir Brasília? perguntar se a população quer e concorda?

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Não quis em nenhum momento denegrir Niemeyer. Reafirmo sua genialidade. O arquiteto foi o máximo. E, humano, além de maravilhas, também legou criações infelizes.

Passear pela primeira ou milionésima vez, à noite, no Eixo Monumental, da Rodoviária até a Praça dos 3 Poderes é um deleite para o olhar. Uma epifania clariceana. Porém, é uma agressão para o mesmo olhar tropeçar, até o fim dos tempos, na feiosa e desproporcional Torre Digital.

Concluo, então, com uma prece agnóstica aos deuses (?): que Oscar Niemeyer descanse em paz. Que seja eterna e que inspire as gerações futuras a beleza e a harmonia das curvas dos edifícios-esculturas dele. E que livrem Brasília do desengavetamento do projeto da Praça da Soberania.


quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

apontamentos para o retorno do herói

O herói largou a mochila no meio da sala. As mãos vazias, como se diz, uma à frente, a outra atrás. Constava, única riqueza, o único despojo, o único espólio, as próprias histórias, talvez menos vividas que inventadas, tanto tempo longe, e que lhe sugeriam um rumo à existência.

Sozinho ele partira. Sozinho retornara.

Não houve para o herói cão, velho servo, ama-de-leite, filho imberbe, esposa, pretendentes, artimanhas ou lutas sangrentas para reaver a casa. Somente a correspondência entupindo a caixa do correio e a fresta sob a porta.

E, amontoada por sobre o sofá e a mesa-de-centro, e se espalhando sobre o tapete, escorrendo pelo chão da sala e do resto da casa, a teia áspera de cada dia, cada hora, cada minuto tecida pela ausência.

sábado, 1 de dezembro de 2012

o herói diante do espelho

é estúpido eu me ver nu no espelho grande do banheiro logo cedo
o riso de quem bebeu demais
o olhar de quem cheirou demais
a pança de quem jantou demais
de quem fodeu demais depois do jantar
de quem bebeu, cheirou, fodeu
depois dos jantares dos últimos dez anos

eu quem frequentava palestras, seminários, workshops
cursos à distância e os presenciais
quem reaquecia o ânimo da galera desatenta
e concluía discursos motivacionais com uma piada inteligente
quem distribuía charutos, os brindes
e servia espumante na festa de confraternização dos subgerentes

eu que até ontem, depois do jantar
fui simpático, engraçado, bem-humorado, de-bem-com-a-vida
eu que sempre contribuí, facilitei
viabilizei projetos
propus soluções
superei metas
sem nunca perder o foco

eu quem cedo ou tarde galgarei o melhor cargo
que sentarei na cabeceira da mesa de reuniões
que estacionarei o carro na vaga privativa
que serei imprescindível e terei direito às melhores comissões
não sou eu o idiota refletido no espelho grande do banheiro

não é minha a cara frágil
o olhar apavorado
de quem teme uma congestão
uma doença venérea
um ataque cardíaco
um avc
uma congestão intestinal 
um mau jeito na coluna
uma gastrite, uma úlcera, um câncer no estômago

não é minha essa cara aparvalhada
de quem teme novos desafios
a contenção de gastos
a redução do quadro
a reestruturação do plano de saúde
as variações da bolsa
a apólice do seguro de vida
o complemento da aposentadoria por invalidez
a prestação da casa própria
a demissão 
o processo por danos morais
(afinal, nunca se sabe, essas putas, esses filhos das putas)
depois do jantar

eu ligo a torneira de água quente e espero o vapor embaçar o vidro
eu espero o vapor embaçar a ridícula imagem refletida

antes de qualquer coisa eu devia fazer a barba
tomar um anti-ácido
pedir suco de melancia com laranja e adoçante
um energético

e vestir o terno, a camisa branca e a gravata dependurados no cabide dos bem-sucedidos

definitivamente não sou eu esse parvo, esse gordo ridículo
úmido, peludo, recurvado
coçando a bunda e mal reprimindo um peido
cintura larga, a barriga escondendo
o pau murcho, encolhido
inútil como o pau de um menino velho

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

instinto natural

Chego em casa tarde. Estranho os bichos não estarem à espera quando abro a porta. O cão velho dá sinal de vida. Abana o rabo contra as paredes da casinha.

Nada da gata.

Coloco a ração, troco a água. Quando estou tirando os sapatos, ouço um chiado esquisito, longo, doloroso. Repetido alguns instantes depois. Procuro. Um rato?

Era um pardal. Debaixo da cama. Semi-morto. Vigiado pela gata. Orgulhosa e assustada com a primeira caça de grande porte.

Alguém me disse que não se deve repreender o animal. Ela agiu por puro instinto. A caça debaixo ou sobre a cama é uma oferenda ao dono.

Ajo psicológica e pedagogicamente. Agradeço à gata com um afago. Controlo a repulsa. Seguro o pardal ainda vivo. Que dá outro grasnado, chiado, sei lá - agonizante.

O que fazer? Abreviar o sofrimento dele? Anestesiá-lo com um pano embebido em álcool e torcer-lhe o pescocinho? Quem disse que dou conta?

Depositei o moribundo no vaso de gerânios, do lado de fora da casa. Esperando, covarde, que ele se recuprere milagosamente com o toque da vara de condão da fada-do-luar. Ou que uma coruja buraqueira termine o serviço iniciado pela gata.

Assim, direta, crua, objetiva é a natureza.

...

Meia hora depois. Enquanto escrevo esta história, a coruja pia na janela. Em seguida mais chiados do pardal. Interrompidos, talvez, por garras afiadas e bico adunco. Ou envolvido pelo edredon de nuvens da fada-do-luar.

...

De manhã o pardal não estava mais entre os gerânios. Sem sinal de penas. Sinal que não foi comido pela coruja. Fico feliz por ter-lhe salvo (mesmo covardemente) a vida.

Chega o cão, todo feliz. Abanando o rabo. Com algo na boca. Deposita com toda delicadeza o "algo" aos meus pés. Era o pardal. Morto, óbvio. Todo babado, meio depenado. O cão o lambia como se fosse um pirulito.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

o neurologista, a tia e o atentado

1.
No início dos anos 90, o neurologista inglês Oliver Sacks ficou conhecido no Brasil por conta do filme Tempo de Despertar (sobre o tratamento revolucionário de pacientes catatônicos em um hospital psiquiátrico nova-iorquino).

Na onda do filme, foram publicados vários livros dele, dos quais li “Um antropólogo em Marte”. O texto acessível e envolvente discorre sobre patologias esquisitas provocadas por disfunções cerebrais. Por exemplo: um pintor que, após um acidente automobilístico, passa a enxergar o mundo em preto-e-branco; um cirurgião que só se alivia de tiques nervosos ao pilotar seu monomotor; um cego que, ao recuperar a visão, percebe que não sabe ver; uma professora autista que ama os animais, mas sente-se perplexa diante das emoções humanas, como um antropólogo em Marte.

2.
Tia Hemicênia (nome que nunca descobrimos a origem) era professora. Das boas. Das antigas. Alfabetizou, educou e ensinou pelo menos 3 gerações de alunos. Famosa no tempo dela pela capacidade de incutir nos alunos, com carinho, ou a ferro e fogo, as agruras, os espinhos, os mistérios da língua portuguesa e a escapar de suas inúmeras armadilhas.

Tia Hemicênia me ensinou a ler. Apresentou-me, aos 7 anos, a obra completa de Monteiro Lobato, infinitos volumes de capa dura, verde, com os títulos e vinhetas prateados. Depois, José de Alencar, Joaquim Manoel de Macedo, Maria Clara Machado, José Mauro de Vasconcelos, Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos, Bernardo Élis, Cassiano Ricardo e tantos outros.

Tia Hemicênia vivia 24 horas atenta aos erros ortográficos e gramaticais: nos trabalhos escolares, no rádio, novelas e telejornais, nas manchetes de revistas, placas de anúncios, embalagens - nada escapava ao seu crivo. Ficava possessa, furiosa quando os encontrava. Escrevia às redações, telefonava às emissoras, às empresas, ou, quando ocorria ao vivo, ela pagava um sermão didático ao infrator.

3.
Quando eu os encontro na leitura, broxo na hora. Execro o autor. Mando e-mail. Envio torpedo. Mensagem privada. Intolerância herdada de tia Hemicênia.

No entanto, condescendo aos erros relacionados às armadilhas da língua. Ou às confusões da pressa. Principalmente quando nos escritos efêmeros da internet. Afinal, atire a primeira pedra quem nunca os cometeu.

Busco o bom senso: alguns são menos erros que desvios da Norma, que como todo mundo sabe, pode variar quando visitada pelo falante comum ou pela elite dominante (como afirmam os estudiosos). A língua é dinâmica e a gramática é burocrática.

4.
Porém, escrever “flecha” com “x”? “xingar” com “ch”? “Texto” com “s”? Fulano e sicrano “chegou”? dói na alma. É demais. Me dá (Dá-me) tonteira, ânsia de vômito e faz tia Hemicênia se revirar no túmulo.

5.
Admitir o erro é o primeiro passo no caminho do acerto.

Pois eu, herdeiro direto da intolerância de Tia Hemicênia, admito. Expio. Bato no peito três vezes: minha culpa, minha tão grande culpa (adoro essa construção). Nos últimos 10 dias eu pequei os 4 pecados do item 4: escrevi “flecha” com “x” em uma correspondência oficial. Por duas vezes, escrevi “xingar” e “xinguei” com “ch”; e emendei a concordância absurda em um mesmo texto publicado no blog. Ontem - horror dos horrores! - escrevi “texto” com “s” em pleno compartilhamento do facebook.

Perdi o sono. Erro de digitação? Corretor ortográfico do programa desativado? Pressa? Displicência? Desatenção? Estresse? Dor de dente? Dor de cotovelo? Lapso senil? Ignorância? Desculpas sempre haverá.

Então surgiu a lembrança do Dr. Sacks da parte 1. Será que fui acometido de alguma síndrome neurológica ainda não descoberta, que apaga momentaneamente a atenção? Que cega o senso crítico? Que converte, de uma hora para outra, um pretenso autor em monstro capaz das piores taras e atrocidades, assassino da própria língua-mater?

6.
Depois de tia Hemicênia eu aprendi a ler o texto 2, 3, 20 vezes antes de torná-lo público. De preferência, passar pelo revisor. Aprendi que, depois de publicado, não se volta atrás, não se corrige de forma digna. Que erratas são atestados de negligência. Que, por mais anuentes, os leitores não perdoarão jamais. Que, por mais banais, os erros fragilizam o autor, expondo-o à chacota, ao apedrejamento, às feras, à pena capital.

Por isso, peço: ao leitor (se é que ainda haja algum), desculpas pelo indesculpável. Aos críticos, vista grossa, ao menos essa vez. Ao Dr. Oliver Sacks, please, encontrar a cura dessa patologia hodienda. À tia Hemicênia, por amor ao vernáculo, que interceda junto às Musas pela salvação da minha  alma (atrofiada) de escritor.

sábado, 24 de novembro de 2012

sobre gripe e cinema


cena de cold fish (shion ono, 2010)
Minhas gripes são avassaladoras. Ocorrem em ciclos mais ou menos regulares, anuais. Culminam um processo lento que se inicia com a euforia dos primeiros meses do ano, os momentos de melancolia e isolamento intercalados no correr dos segundo e terceiro trimestres e a crise propriamente dita. Dura entre 7 e 10 dias. Nas semanas depressivas que precedem as festividades de fim-de-ano.

Tirando os sintomas (pressão arterial baixa, espirros, calafrios, tosse seca, nariz e garganta entupidos, dor no peito, sonolência, febre, moleza, mal-estar geral e dor de cabeça), a pausa causada pela gripe anual possibilita interiorização bastante produtiva.

Geralmente eu leio. Livros chatos, cujas leituras vêm se arrastando por meses (aquele sobre a vaidade), mas que eu não consigo largar de mão. Livros que ninguém mais lê (na louca, encomendei de um sebo virtual a vida dos homens ilustres, de Plutarco). Abro exceção para ler autores novos, novíssimos e revelações (sem citar impressões, nomes e títulos). Best-sellers, tops da lista dos mais vendidos, indicados pelos amigos (os hilários tons de cinza), etc.

A gripe atual está particularmente forte. Uma espécie de morte-em-vida (horas e horas deitado, sem energia nem para buscar um copo d'água na cozinha). Por isso, eu a dediquei ao cinema. Assisto filmes de manhã à noite. Cinema Nacional. Clássicos. Épicos. Japoneses. Gays. Trash. Comédias. Faroestes. Pornôs. Documentários. Ação. Romance. Aventura. Comédia. Animações. Com ou sem legenda, dependendo do idioma. Em tecnicolor ou preto-e-branco.

Ontem não houve concessão para besteirol. De uma enfiada, vi: Narradores de Javé (Eliane Caffé, 2003); Noite Vazia (Valter Hugo Khouri, 1964); Raízes do Brasil I e II (Nelson Pereira dos Santos, 2003); A hora e a vez de Augusto Matraga (Roberto Santos, 1964); de quebra, o clássico Belle de jour (Luis Bruñuel, 1967). Obs.: A ostra e o vento (Walter Lima Júnior, 1997) eu desisti no início: era além das minhas forças.

Os "Narradores" e "A ostra" podem ser esteticamente enquadrados na categoria dos filmes nacionais não vistos dos anos 80 ou 90. A sensação final é de desperdício: ótimos atores. Fotografia e trilhas sonoras incríveis. Bons argumentos. Roteiros promissores mas mal alinhavados. Diálogos sofríveis. Direção a desejar e finalização apressada.

Exceção para o "Raízes" (subtítulo: uma cinebiografia de Sérgio Buarque de Hollanda). Disfarçado em um daqueles filmes caseiros, de família. Com direito a cervejada, criançada na piscina (?) e churrascão. Só que "da" família. Cujos membros circulam, à vontade, em botequins, rodas de samba, ambientes acadêmicos e ministeriais. Até Carlinhos Brown (que nem conheceu o pai do sogro) depõe no documentário. A certa altura, o charmoso Chico folheia um "dicionário de termos afins", que ganhou do pai (deu vontade de ler). A primeira parte do documentário é envolvente, viva, muito graças à graça das falas das filhas e neta cantoras e da matriarca Memélia. A segunda é muito chata. A autobiografia cronológica de Sérgio é lida pelas filhas, entremeada de História do Brasil e trechos do Raízes do Brasil.

"Noite vazia" e "A hora e a vez" estão na categoria dos Clássicos do Cinema Nacional. "Noite vazia" tem um quê da estética nouvelle vague (longas tomadas, imagens paradas, expressões estáticas, maquiagem pesada, muita luz-e-sombra, alta tensão interna, excesso de cenas urbanas noturnas, silêncios e, como o próprio título sugere, o vazio existencial dos personagens e do próprio filme).

"A hora e a vez" é puro cinema novo. Arrebata. Primeiro, pela fidelidade ao conto de Guimarães Rosa. O cuidado com os diálogos, a caracterização dos personagens, as locações do sertão, a cenografia, figurinos, a música de Geraldo Vandré etc etc. A interpretação de Leonardo Villar e de Jofre Soares é de babar. Ruim só a cópia: borrada e com uma logo do site o tempo inteiro no canto inferior direito da tela.

Hoje, para começar, escolhi Cold Fish (Shion Sono, 2010). Talvez o Cafundó (Paulo Betti, 2005). Homem-aranha, Batman, A saga de Shrek (ainda não descobri onde baixar os 4 filmes) ou algum besteirol gls, dublado, do Coca-e-pipoca. E torcer para a gripe acabar. Pois segunda-feira a vida tem que voltar ao normal.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

reflexões do anti-herói

Fosse melhor dotado de corpo, diria meu pai, eu teria sido um homem público. Houvesse uma gota que transbordasse a taça da coragem, do ímpeto e da inteligência, o mundo teria ganho um líder. Ou um criminoso.

Meu miolo é mole para a filosofia. A arte me enfada. Os números e as ciências me são intransponíveis. Lutar me cansa, só de pensar. Mesmo assim eu me iludo: serei o protagonista de ao menos um feito memorável. Que seja o de arancar da cara a máscara da mediocridade.

Minha verdadeira vocação é o palhaço.

Tenho cometido mais erros que o admissível. Desde os básicos até os profundíssimos. Por sorte, atualmente só os da primeira categoria: conversar sozinho; beber além da conta; jogar a guimba do cigarro pela janela.

Um, único erro profundíssimo me consome: existir. Desse eu um basta, como  a namoradinha grávida o deu, na correnteza.

Existo vago, desprovido de alma. Testemunha involuntária de crimes hediondos. De prevaricações de folhetim. A pouca-vergonha que me envolve me corrói. Percorro, sozinho, todas as noites, o mundo intermediário, povoado por ausências. Pelos fantasmas das frustrações e das lembranças.

domingo, 18 de novembro de 2012

libação

Libar é um verbo estranho. Relacionado ao sentido do sagrado. Eu libo, tu libas, ele liba, nós libamos, vós libais, eles libam.

Eu libo à insônia e à sonolência. À macarronada, ao churrasco e ao vegetarianismo. À orgia e ao celibato. Ao sábado de sol e chuva. Ao domingo de tédio. À segunda-feira de desesepero.

Ao doido Lear que me habita. Libo aos bobos vitoriosos e bobos derrotados. Aos momentos felizes e à insatisfação em cada hora, cada minuto, cada instante do dia. Ao lírico e ao ridículo. À pompa e à circunstância. Ao compromisso e ao desleixo. Ao sério e ao excesso. Ao desespero de ser. À integridade inata e ao politicamente correto.
 
Também libo aos mortos em geral. Aos mortos que povoam o sono e a vigília. Aos mortos que viverão na memória. Aos mortos que, mais cedo do que tarde, serão esquecidos. Aos mortos que insistem em permanecer vivos. Aos mortos que dançam sob a chuva do entadecer. Aos mortos insepultos. Aos que morrem dormindo. Aos mortos ressuscitados que padeceram e voltarão no terceiro dia.

Eu libo às aberrações e aos amores fugazes. Às emoções, os sentimentos e sensações. Aos plantonistas e aos coveiros. Ao haver e ao dever dos contadores. Ao fluxo menstrual das vendedoras de cremes rejuvenescedores. Às floristas. A todos aqueles que convivem com a Inevitável.

Eu libo aos sufocamentos e às transcendências. À superação do ser e à submissão do espírito. Ao funâmbulo que despenca da corda bamba estendida entre os décimos-segundos andares de dois edifícios do Centro.

Eu libo às danças: ao tango e à doença de São Guido. Aos atores e aos impostores. Eu libo às divas e aos canastrões acometidos do mal de alzhaimer. Às prostitutas blenorrágicas e aos poetas clássicos. Aos romances vividos ou escritos. Aos contos de terror inacabados. Às personagens secundárias e aos protagonistas mal-amados.

Voltando ao início, eu libo a Dionisos. Ao sol, à chuva. À vida em geral. À escuridão da noite. Ao cinzento da madrugada. Sucedida, sempre, da claridade dos dias.



sábado, 17 de novembro de 2012

butoh no parque 3




(Clorofeelings, resultado de oficina, Jinen Butoh, Astushi Takenouchi e Hiroko Komiya, apresentação no Parque Olhos D'água, Brasília, 17.11.2012)

butoh no parque 2







 
(Jinen Butoh, Astushi Takenouchi e Hiroko Komiya, apresentação no Parque Olhos D'água, Brasília, 17.11.2012)

butoh no parque 1



Jinen Butoh, Astushi Takenouchi e Hiroko Komiya, apresentação no Parque Olhos D'água, Brasília, 17.11.2012

a filha

Eu não sei mais o que fazer com papai. Tenho notado, há algum tempo. Algo muito esquisito no comportamento dele. Nunca dei bola, sei lá, coisas da idade, afinal, mesmo com toda a saúde e lucidez, aos 90 um deslize ou outro é natural.

Mas ontem ele extrapolou. Inventou de sair. A pé, ainda por cima. Papai, onde o senhor vai com essa chuva? Ofendeu-se. Não devia satisfações a ninguém. Deixei ir. Não iria longe, teria medo, os vizinhos o conhecem, voltaria com os primeiros pingos de chuva.

Quem disse? 9, 10, 11, meia-noite e nada dele voltar. As manas? Não estão nem aí. Muito pelo contrário. Só digo pra você: elas mal se aguentam de esperar papai bater as botas para meter a mão no que sobrou da herança.

Deixa pra lá. A chuva caiu daquele jeito que você viu. Nada dele voltar. Liguei para as manas. Só caía na caixa postal de uma e da outra. Liguei para a polícia. Mandaram ligar para o Samu. De manhã trouxeram ele. Enxarcado. Tremendo de frio.

Totalmente fora de si. Doido mesmo. Eu nunca tinha visto papai daquele jeito. Eu fui abarçar, limpar a lama do cabelo dele, enrolar um cobertor. Ele me empurrou. Me xingou, na frente dos bombeiros. Me chamou de falsa, interesseira, solteirona mal-amada. Disse para eu ajuntar os meus trapos e sair da casa dele. Me expulsou!

Eu não aguentei! Será que ele não reconhece que eu sou a única que me preocupo? Que as manas paparicam ele pelo telefone, ou quando aparecem, de quinze em quinze dias, quarenta minutos no máximo? Que por mais de 5 anos eu vivo 24 horas da minha vida exclusivamente para ele? Sopinha, remedinho, roupinha lavada, fisioterapia, geriatra, nutricionista, psicólogo, caminhada, resultado de exame, tudo eu providenciando, tudo eu agendando, tudo eu anotando, lembrando, cuidando, a tempo e a hora?

Só digo isso pra você, deus me livre, mas tem hora que eu penso em jogar tudo pra cima, dar uma de doida, largar de mão, assinar a tal declaração, viver a minha vida, deixar um pouco do peso e da responsabilidade por conta das manas.

Mas eu tenho certeza, aquelas duas, com os canalhas e dos cunhados, na mesma hora internariam papai no asilo. Papai vai ser mais bem cuidado lá. Médico e enfermeiros de plantão, tevê em cada quarto. A primeira coisa que fariam era vender a casa e os terrenos. Com o dinheiro da aposentadoria, não tem como elas meterem a mão, alugariam uma kit. Largariam papai lá sozinho, com uma empregada sem a mínima condição de cuidar dele.

Monstruoso? pois eu já ouvi da própria boca delas. A gente vem todo dia pra fiscalizar, fazer mercado, dar uma assistência, disseram. Claro que "a gente" será a solteirona, a mal-amada, a feiosa aqui. Mas sabe de uma coisa? Eu prefiro. Acho que eu sou daquelas que ainda vai sofrer muito antes de encontrar a felicidade.

Mais 4, 5, 10 anos? Não, eu não quero que papai morra. Mas não se pode fingir que a realidade existe. Só espero que seja de repente, sem dor, sem sofrimento, sem dar trabalho. Mas você sabe, eu vou cuidar dele até o fim. Mesmo ele me magoando. Mesmo ele me olhando daquele jeito esquisito. É, talvez demore, mas eu vou sair desse sufoco.

E você, tudo bem?

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

citação para narrativa possível

"A ausência diminui as paixões medíocres e aumenta as grandes, como o vento apaga as velas e atiça as fogueiras."

La Rochefoucauld citado no conto Miss Dollar (Machado de Assis, Contos Fluminenses)

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

a idade e o herói

Saio de casa cada vez menos. Para o almoço no self-service, quando acabam-se os provimentos da despensa; para visitar o amigo doente, tão velho quanto eu; para comprar pilhas da lanterna e ração para os gatos que de vez em quando surgem e se instalam no vão entre o forro e as telhas.

Por recomendação médica, tomo o primeiro sol da manhã. Aboletado na janela que dá para o pátio. Sempre me esqueço das vitaminas e do horário dos remédios que, no máximo, prolongarão por meia década, se calhar uma inteira, esse meu vegetar.

Não que o pejorativo me incomode, vegetar. Pois eu invejo o existir lentíssimo das árvores. Quase como se crescessem para dentro. Quase que imóveis, imobilizadas, não fossem os ciclos, os tantos verões e outonos. Ou as brisas e as ventanias do dia-a-dia.

Pois que eu ando dado a lirismos. Isso, agora, tão inusitado, inadequado. Na contra-mão da nostálgica força, clareza e objetividade de uma época acabada e que não volta mais. São, sem dúvida, os efeitos colaterais da idade.

Tenho alguns pavores meio secretos: ao telefone e ao barulho dos carros. Aos bêbados. Às ratazanas. Às lembranças de família. Aos padres, pastores e guias espirituais em geral. Aos cumprimentos, aos bons-dias e boas-noites de gente desconhecida.

Gosto de caminhar de madrugada. De preferência depois da chuva. Para ouvir os silêncios intercalados aos latidos dos cães. Para sentir o cheiro de limo do escuro. Para sentir o frio, a umidade subir em ondas, pelo solado da botina, como uma seiva, e se misturar com o calor e o suor do esforço.

Depois eu volto para casa. Engulo com um copo d'água os comprimidos da noite e durmo em seguida. Não, eu não me lembro mais da noite em que deixei de sonhar.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

planos para o futuro do herói

Hoje encomendei creme rejuvenescedor e tênis de corrida pela internet. Durante o almoço (risoto, salada crua e iscas de fígado grelhadas) tratei de investir uns caraminguás para garantir as incertezas do futuro. Desisti da sobremesa por causa das taxas de colesterol. Nesse aspecto não sou modesto: aprendi a cuidar da saúde e levo jeito para administrar rendimentos.

Calculei, por alto, os riscos da aplicação. Gastei o resto da tarde em planear o futuro para além do corriqueiro: as mudas exóticas que verei crescer no jardim; a ampliação dos horizontes físicos e mentais por meio da ioga, alimentação equilibrada e caminhadas; as características físicas, morais, psicológicas e a idade da mulher que escolhi para avó dos meus netos; que não morrerei de ataque cardíaco fulminante como meus parentes nem dessas doenças degenerativas anuladoras do ego e das vontades do indivíduo.

Por falar em cultura, estou dividido: adquirir, num sebo, os 15 volumes encadernados da Obra Completa de Machado (edição de luxo, encadernação em couro, folhas amareladas pelo tempo) pelo metade do preço de uma tevê de alta resolução que vi em promoção no shopping. Os livros, duvido lê-los todos antes do fim da próxima década. A tevê, ao contrário, encherá a sala de vida em volume alto até o fim da garantia estendida. Serei um intelectual medíocre ou um espírito aberto às variadas e nem sempre elevadas manifestações humanas?

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

desenho

único desenho passável feito com o aplicativo
Há alguns meses fui desafiado: ilustrar o lindo texto de um amigo. Como assim? Depois de pelo menos 20 anos sem desenhar? A culpa era minha: mandei para o autor do texto a "Rapunzel" (Editora Thesaurus, 2005, capa e desenhos meus). O amigo gostou e me encomendou a tarefa.

Topei. Instalei um aplicativo poderoso. Recuperei a mesa digitalizadora. Experimentei os mil-e-um recursos, técnicas, funcionalidades do software. Um dia, uma semana, um mês e nada! Dado o fracasso, decidi declinar o convite. Por incapacidade. Definitivamente, desenhar nada mais tinha a ver comigo.

Foi quando veio o insight. Simples, fácil, óbvio: e se eu desenhasse de verdade? Tinta no papel? Lembrei-me das canetas nanquim dos anos 80: 0.2, 0.5, 0.7 e 1.0mm (medidas de espessura do traço). Elas davam uma trabalheira para carregar. Para limpar depois do uso. Entupiam. Entortavam as pontas. Só funcionavam com tinta importada, cara. Derramavam. Sujavam os dedos. Tão pouco práticas nesses tempos digitais...

Duvidei: nem devem fabricar mais. Que nada. Descobri pela internet que ainda existiam. Fui a uma loja de material de artes tradicional (passeio que não fazia há milênios). Encontrei as tais canetas. Comprei uma de cada. Da mesma marca das antigas. E papéis.

Saí da loja feliz. Com a sensação de ter resgatado algo importante. Algo soterrado no passado por camadas e mais camadas de estética (às vezes presunçosa) do que eu acreditava ser a contemporaneidade.

Desenharei. Sem pressa. Sem pretensões estéticas ou artísticas. Apenas que os desenhos fiquem à altura da beleza do texto. Que tragam de volta aquele prazer simplezinho, infantil, antiquado - de sentir a textura do papel sob o dedo, o cheiro da tinta, a pressão da mão, o movimento adequado do punho, o cuidado para não riscar errado, não borrar, o gosto tão bom de começar a desesquecer.

domingo, 11 de novembro de 2012

imagens do sábado (gormley-ccbb) 6






(fotos de "critical mass II", do artista londrino antony gormley, parte da exposição "corpos presentes", no ccbb brasília)

imagens do sábado (gormley-ccbb) 5





(fotos de "critical mass II", do artista londrino antony gormley, parte da exposição "corpos presentes", no ccbb brasília)

imagens do sábado (gormley-ccbb) 4






(fotos de "critical mass II", do artista londrino antony gormley, parte da exposição "corpos presentes", no ccbb brasília)

imagens do sábado (gormley) 3

(fotos de "four times", do artista londrino antony gormley, parte da exposição "corpos presentes", no ccbb brasília)

imagens do sábado (gormley) 2

(fotos de "four times", do artista londrino antony gormley, parte da exposição "corpos presentes", no ccbb brasília)

imagens do sábado (gormley) 1

(fotos de "four times", do artista londrino antony gormley, parte da exposição "corpos presentes", no ccbb brasília)

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

bucólica

Acordo com a claridade atravessando o vidro da janela. Com o barulho dos pássaros. Com o canto do galo desregulado do vizinho. Com a chuva fina pingando nas calhas, nas folhas, na grama. Esfrego os olhos para tirar a poeira e a umidade dos sonhos.

O cão ainda ressona. A gata sobe na cama enquanto afofo os travesseiros e dobro o cobertor.  A lâmpada acesa durante a noite na varanda (para afugentar ladrões) só serve para atrair milhares de besouros, pequenos, feios, cinzentos, desnecessários, desemborcados, espalhados pelo chão.

Para além do vidro, tomateiros a disputar terreno nos vasos de espadas-de-são-jorge e comigo-ninguém-pode. Ramas de hortelã nas frestas da calçada. O pomar: jabuticabas coladas ao tronco, como olhinhos sem piscar. Acerolas que já sobram, pontilhando o chão de vermelho. O pé de tangerina, só flores brancas. A bananeira que cresceu pelo menos um  palmo desde a última chuva. Ramos raquíticos de hera subindo pelo reboco. Depois do muro, a mancha verde-escura do mato e das árvores do parque. Mais longe ainda, nos intervalos do mato, a água que começa a pratear.

Ligo o rádio, nas notícias. Varro os besouros da varanda. Coloco comida e troco a água do cão e da gata. O cheiro de café, de pão quente e manteiga derretida exala pela casa. Seguro a caneca com as duas mãos e penso, cada vez mais distante, cada vez mais fraco, cada vez menos dolorido: um dia houve angústia, insatisfação e ânsia com o desejo da tua presença.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

desabafo

você sabe tudo, você tem opinião sobre tudo, você conhece tudo, onde comprar barato cerveja importada, onde encontrar endívias, como cozinhar arroz arbóreo, qual a melhor época para viajar de carro pelo sul da França, como escolher um bom restaurante em São Paulo, quais as praias mais bonitas do Nordeste, os nomes dos vinhos a se comprar em Portugal,

tudo tem defeito pra você, de tudo você reclama, encontra problema, o engarrafamento pela má engenharia de trânsito, o débito automático da conta da operadora de telefonia, o tempero da comida do restaurante self-service, o atraso da faxineira, a fedentina do banheiro masculino, a greve da polícia federal, a irresponsabilidade do teu chefe,

eu queria tapar os ouvidos para não escutar a tua dicção quase perfeita, a tua articulação mastigada das frases, a tua pronúncia como se esfarelasse as vibrantes, eu queria não enxergar as tuas expressões faciais, tua sobrancelha arqueada ao perguntar sem interesse, sem ouvir a resposta, a tua insistência em olhar nos olhos, os teus gestos de mãos, a tua mania de girar a aliança no dedo,

eu daria tudo pra não ouvir a humildade falsa dos teus auto-elogios, a tua empáfia dissimulada, em ressaltar que tudo teu - os teus pensamentos, as tuas convicções, a tua moral, a tua formação, a tua família, as tuas ironias politicamente corretas, o teu bairro, o teu carro, o teu modo de vida - são os melhores, os mais corretos, os mais honestos, limpos, intensos e profundos,

eu não quero mais ouvir o teu tom condescendente para, como quem não quer nada, apontar nos outros qualidades que você não enxerga em mim, a minha inabilidade para organizar a casa, a estreiteza dos meus pontos de vista, os meus objetivos tímidos de professora, a minha insegurança na criação dos meninos, a minha origem, a minha  paixão ridícula pelas plantas, o meu comodismo, a minha indisposição para o novo, o incerto, a aventura, o desconhecido,

eu queria poder colar com esparadrapo a tua boca, furar a carne do teu braço, até o osso, com a agulha desse catéter, lábios ressecados de sede, te deixar mijado e cagado e assado, esfregar gaze até tua virilha ficar em carne viva,

eu queria poder rir dos teus balbucios, do teu olhar perdido que graças a deus não intimida mais o meu, te fazer saber que a cama automática é importada, que estamos hospedados no melhor quarto do hospital, que o médico que te acompanha é o mais conceituado, que o teu plano de saúde é o mais caro e que apesar da minha incompetência, o nosso casamento ainda está valendo, eu estarei aqui, ao teu lado, sempre, até no último fiapo da tua lembrança, no último resquício do teu raciocínio, no último espasmo, eu estarei aqui, ao teu lado, até que ela venha e finalmente nos separe. 

estratégias, promessas & sonoridades explosivas

Estratégias para sobreviver aos dias chuvosos da existência: Elaborar listas para intitular o inominável. Enxergar invisibilidades. Sincronizar os mundos interior & exterior. Hierarquizar a intensidade das reações. Compatibilizar os impulsos vitais com os universos paralelos. Ler leituras imprescindíveis & descobrir revelações ao acaso. Ouvir música. Para não sucumbir à inércia. Para não se perder entre o excesso ou a ausência de nortes que a rosa-dos-ventos aponta.

...

Para ler em voz alta em momentos de pânico: Ilha. Marmelo. Sansão. Mingau. Catatau. Teobaldo. York. Peba. Tembé. Tupã. Valdick. Jerimum. Oberon. Barney. Guarani. Machado. Argólida. Chuvisco. Perfume. Retaliação. Trombose. Flatulência. Odisseu. Banana. Bomba. Cabrum!

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Promessas 1: Evitarei a companhia de heróis estúpidos & musculosos. Repudiarei a ira & a volubilidade dos deuses. Resistirei ao leito de semideuses inseguros & convencidos. Impedirei o assédio das ninfas obstinadas & obcecadas. Esquivar-me-ei dos malabarismos & das safadezas do destino. Medirei com mais rigor o comprimento & espessura & qualidade do material cardado pelas moiras.

...

Promessas 2: A partir de hoje evitarei adjetivos aos pares. Mesclarei terceiras pessoas do singular ao discurso indireto livre. Narrarei histórias com personagens críveis & começo-meio-fim. Evitarei neologismos & estereótipos & provérbios populares & construções pernósticas & sonoridades fáceis. Cuidarei das figuras de linguagem & de estilo como se fossem sangue de meu sangue. Renegarei elogios & crescerei com críticas & julgamentos.

domingo, 28 de outubro de 2012

diário gerúndio da incapacidade

Batendo claras em neve para o recheio dos dias futuros. Afundando azeitonas no pântano das ervas finas & dos gozos mal sucedidos. Amassando fragmentos do discurso amoroso & pondo tudo a perder com a overdose de ditirambos.

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Entortando a ética & a moral para caber na forma. Cobrindo a mediocridade com papel-alumínio antes de levar ao fogo brando das vaidades. Envenenando o otimismo & a bem-aventurança com creme de leite. Reforçando o chocolate da sobremesa.

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Ouvindo Billie Holiday. Ouvindo o galo cantar às 2 da manhã.

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Jogando jogos duplos para adiar confrontos. Perdendo a rodada para Lady Macbeth. Gastando um dedo de prosa com a gueixa enquanto seu lobo não vem.

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Lendo Sylvia Plath para a gata no cio & para a cadela aleijada & para as ratazanas do banhado. Desligando Billie Holiday. Enfiando a cabeça no forno microondas antes do galo cantar pela terceira vez.

...

Tomando um copo d'água. Tomando um banho frio. Pedindo aos deuses um pouco de malandragem & sonhos reveladores & sono reparador que dure até o alvorecer.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

novela

Nos primeiros capítulos, entre eles tudo era amores: jantares, presentes, olhares, flores, resorts, suítes de motel, luar e até um ciumento dia dos namorados.

Lá pela metade, os capítulos se espicharam e a paixão arrefeceu. Vieram os primeiros deslizes, as mentirinhas, as omissões e os mil vezes malditos telefonemas e mensagens sem retorno.

Na reta final, forjou-se a separação. Com expectativa de reconciliação. Para recuperar os índices de audiência.

No entanto, a última semana foi um fracasso. Apesar dos segredos bombásticos revelados (as maldades da malvada, a filha bastarda, a morte do bom moço, a operação para mudar de sexo, o golpe do baú, a bancarrota, o julgamento do inocente, etcétera) - apesar de tudo, a reconciliação prometida não aconteceu.

O fim chocho foi cada um para o seu lado. Sem festa, sem buquê, sem apoteose. Na última cena, em seu apartamento penumbroso, um ligava para o outro. O outro, à beira da piscina, só risos, música alta e gente bonita em volta. Olhava o mostrador do aparelho. Sorria um sorriso de escárnio. Deixava tocar até a bateria acabar.

O que tinha ligado olhava para a câmera. Como se dos pulsos cortados fosse esguichar no telespectador a falta de sentido de toda a dor, todo o sofrimento imputados e acumulados, capítulo a capítulo, até as cenas da próxima novela.




quarta-feira, 24 de outubro de 2012

diário

Chego bem cedo no trabalho. Para não ser obrigado a responder os bons dias e nem ouvir os comentários sobre a programação televisiva do final de semana. Coloco os fones de ouvido e me isolo na tela do computador. Só ouvindo Etta James para consertar o dia que mal começa.

Perdi o sono: dor-de-cabeça e câimbras noturnas que nunca tive (sinais da idade). Estresse e pensamentos repetitivos. Lembrança, na madrugada, de compromissos bobos. Sonhos com situações não resolvidas.

Marcas irreversíveis das eras: rugas nos cantos dos olhos; pele-de-galinha nas mãos e pescoço; vísceras inchando por dentro; desejo e libido anulados. Nem glúteos bem proporcionados, peitorais lisos na piscina, cortes de cabelo redesenhando pescoços – nada me tira do sério.

Bloqueio criativo. Escrevo lasso. Leio: teoria literária, vaidades, Onetti. Resgatei, da adolescência, as maravlihosas Metamorfoses, de Ovídio.

Na internet eu me especializo em aberrações. Desde comentários preconceitosos de leitores de jornais on-line sobre crimes e assassinatos até banalidades da vida das celebridades. Recolho amostras dos absurdos que o ser humano é capaz de fazer, pensar e se expressar.

Além disso, pesco exotismos. Ontem, li sobre um santuário de gorilas, no coração da África. Trechos do diário de Sontag. Epigramas do velho Cioran. Hoje vi paisagens que simulam pinturas. E uma baleia a imitar a voz humana. Depois ouvi Jeff Buckley. 

Preciso estudar inglês. Consertar o telhado da casa. Levar o cão ao veterinário. Cuidar das costas. Fazer acupuntura. Me inscrever no curso de gastronomia. Preparar o almoço da mamãe que faz 100 anos. Satisfazer instintos sublimados. Remodelar a construção das frases. Riscar pleonasmos. Maneirar nos clichês e nos vícios de linguagem. Preciso pedir ao doutor dose extra do elixir para suportar os dias que se acumulam.


(trecho de carta-e-mail a uma amiga)

terça-feira, 23 de outubro de 2012

mitológicas

Hoje eu atravessei as horas como se carregasse às costas um saco de pedregulhos colina acima.

...

De tão entorpecido, servi iscas do meu fígado acebolado aos abutres, e nem doeu.

...

Te perdi para sempre ao me virar (para ter certeza que era mesmo você que me seguia), antes que cruzássemos a saída de serviço da mansão dos mortos.

mitológicas

Hoje eu atravessei as horas como se carregasse às costas um saco de pedregulhos colina acima.

...

De tão entorpecido, servi iscas do meu fígado acebolado aos abutres, e nem doeu.

...

Te perdi para sempre ao me virar para ter certeza que era mesmo você, antes que cruzássemos a saída de serviço da mansão dos mortos.

sábado, 20 de outubro de 2012

mitológicas

A trilha estreita divide: de um lado o paredão de pedra. Do outro, o abismo.

No rochedo há górgonas pousadas nas cavidades. Ansiosas para serem encaradas. Mas não será meu o coração que elas transformarão em pedra.

Do outro lado o vazio, a queda, o vento, o mergulho, o fundo, o mais fundo. E no fim o escuro e o barulho da arrebentação nos arrecifes. Por sorte tatuei um par de asas nas minhas omoplatas.

Fecho os olhos. Sigo em frente. Passos de sonâmbulo. Sentidos amortecidos pela impossibilidade. Pernas e os braços envenenados pelo medo. Guiado pelos fogos-fátuos até o cão de três cabeças que vigia as minhas incertezas.

envy

(http://www.barryxball.com/)

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

diário do presente do indicativo

Retorno para a prateleira os romances de amor lidos pela metade. Leio contos & considerações filosóficas de outras datas & orgasmos múltiplos & vaidade & fraquezas dos deuses & vícios de segunda ordem na existência humana.

...

Invoco & depois apago poemas chucros a Dionisos. Escando versos atonais, aos berros, com as bacantes. Canto desafinado: o banheiro é a igreja de todos os bêbados.

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Expurgo más intenções.  Ressuscito verbos & substantivos & adjetivos intravenosos.

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Ressurgem das cinzas personagens planos. Reescrevo o roteiro dos últimos capítulos da novelinha shakespereana, pouco digna do horário nobre. Ao tempo em que espero Átropos cortar o fio que Láquesis cardou e Cloto segurou (ou será o inverso?).

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Procuro pacotes turísticos promocionais alternativos. Mas para a viagem ao Hades são vendidas passagens somente de ida.