segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Marlene

Ele mostrou o estúdio. Prédio inteligente. Sacada. 22 metros quadrados. Depois comeram pães de queijo e chocolate quente no café debaixo do prédio. Para ele explicar o financiamento. Até a chuva diminuir.

A conversa estendeu-se. Como se não houvesse compromissos. O oftalmologista. Os clientes. Entendiam-se perfeitamente. Como se não houvesse 20 anos entre eles. Como se se conhecessem de outras encarnações. “A senhora se parece muito com uma pessoa que...” “Senhora”?

“Foi maravilhoso”, ela disse. Ele sorriu.

Alvoroçada. Dentro do táxi tirou o celular da bolsa. Quase apertou o recall. Para agradecer a tarde inusitada e agradabilíssima. Um corretor? Ah, os superlativos, as diferenças, as palavras fora de moda. Ligava? Não. Pediu ao motorista a gentileza de abaixar a música.

Nem telejornal. Nem revista. Nem o romance que a amiga de Barcelona indicou. Nem sono. Ligaria. No final da semana.

O perigo era deixar-se levar. Pelas circunstâncias. Pela falta de sentido. Pelo vulto que aquilo poderia tomar. Gracinha. Cara de pitbull. Jeito de dog alemão. Alma de poodle. Assim tão rápido? Ela, um gato persa. Não era nenhuma menina.

Dali em diante procrastinou tudo o que não fosse ele. A matrícula do curso de culinária espanhola. A aplicação com a gerente do banco. A amiga no skype. Tudo em função de olhar apartamentos. Novos. Velhos. Alugados. Imperdíveis. Na justiça. Desocupados. Perfeitos. Detonados. Na planta. Unidades mobiliadas. Oportunidades. Para investimento.

Ele ligava: “Acabei de receber as chaves”. “Do jeito que a senhora quer”. Ela atendia: até a piada: "o corretor vem de brinde"?

Ele todo amabilidades. “Qualquer dúvida, ligue”.  Amor? Censurava-se. “Não seja ridícula”. “Só um corretor”.

Os cafés após as visitas escasseavam-se. E duravam o estritamente necessário. Ela estranhava. Ele se afastava-se ou era impressão? "Não seja tão ansiosa".

“Lá pelo décimo apartamento ele recusou. “Infelizmente não. Dois clientes agendados”.

Ela morreu por dentro. Ligou uma. Duas. Várias vezes. Dúvidas, desculpas. Ele deixou de atender. “Anote, por favor. O número do despachante”. “Precisamos marcar outro café”. Ele ocupadíssimo. “Qualquer hora dessas”. Ela insistiu. Ele: “Amanhã às 14 então”. “Para colocar os pingos nos is". "Naquele lugar”.

Ele ligou. Às 13h45. “Cliente imprevisto”. Ela controlada: “Tudo bem”. “Fica para a próxima”.

Cega. Obcecada. "Eu pago à vista". Evitava a amiga. “Não percebe o jogo?” Ela percebia. Mas era inevitável.

Até fechar o negócio. Ele infelizmente sempre ocupado. Sempre o despachante. Ela soluçou “Não esqueci o nosso café”. Golpe de misericórdia dele: “Qualquer hora dessas..." "A gente se cruza”. “Dona Marlene, você fez um excelente negócio”.

2 da tarde, sol quente, ela parada, perdida, atônita na porta do cartório, envelope com a escritura na bolsa, nem se lembrou de colocar os óculos escuros, ouvindo o eco da voz dele na kit do coração vazio.

domingo, 30 de outubro de 2011

o mundo da criança

De "O Mundo da Criança", coleção publicada pela Editora Delta nos anos 50/60. Pela última vez. Acabei de ler a advertência: "reservados todos os direitos. Êste volume não pode ser reproduzido, no todo ou em parte, de qualquer forma, sem permissão escrita dos Editôres".

sábado, 29 de outubro de 2011

o escriturário - parte 1

Esquisitão. Doido manso, disseram. Ligava o micro sem falar com ninguém. Até o fim do expediente. Não participava do aniversariante do mês; do happy hour; do cafezinho; do amigo oculto. Vez em quando sumia. 2 semanas de atestado. Mas era muito inteligente. Talento desperdiçado.

Até chegar a notícia. Mais ou menos esperada. Suicídio. Mais cedo ou mais tarde, disseram. Rei morto, rei posto. Promoveram-me. Para ocupar a vaga.

O serviço é relativamente simples. Cada escriturário é responsável por analisar e emitir parecer técnico em uma quantidade X de processos por mês. Perfurar o processo; encadernar o processo em uma pasta de capa dura; carimbar o protocolo na folha de rosto do processo; ler o processo; sublinhar com caneta marca-texto partes importantes do processo; emitir um parecer de 5 linhas na última folha do processo; encaminhar o processo para conferência do supervisor; receber o processo homologado; arquivar o processo.

A quantidade é fixa e razoável. Arquivados todos os processos do mês, fica-se à toa. Ou na Internet, quando funciona. Só não se pode ir para casa. A maioria dos colegas "estica" o processo ao máximo. De forma a preencher todo o expediente. Até o recebimento de novos processos.

Eu ainda não aprendera o artifício. Meu primeiro mês terminou no décimo dia útil. Cuidado para não ficar como seu antecessor, disseram. Ele terminava rápido. Depois passava dias, horas inteiras parado. Diante do computador. Ou diante da mesma página do livro aberto dentro da gaveta. Também escrevia. À mão. No verso de páginas e páginas do refugo da máquina xerox. Ao final do dia picotadas no triturador de papel.

Minha primeira função foi verificar o arquivamento os processos dele. Em perfeita ordem. Então juntar os clipes. Reabastecer o grampeador. Recarregar a tinta dos carimbos. Separar as canetas por cor e tamanho. Arrancar as folhas do calendário. Arrumar as gavetas.

No fundo havia um envelope de papel pardo tamanho A4. Contendo 31 folhas impressas de um lado e manuscritas no verso. Com a letra do meu antecessor. Li rapidamente. Espécie de sistema filosófico. Filosofia nunca foi meu forte. Sem razão aparente, xeroquei as folhas antes de entregar o envelope ao supervisor.

Reli no ônibus. De novo em casa, depois do banho e do lanche. Instigante.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

menina (poeminha de o mundo da criança)

sister

Na verdade eu queria ser lixeiro. Pra andar dependurado naquele caminhão. O pai diz pra eu deixar de ser bobo. Lixeiro é obrigado a mexer no lixo dos outros. Não tem problema. É só usar luva. Sabe o que eu acho? Que o pai não gosta de mim. O pai gosta mais do Ico. Porque o Ico se parece com o pai. Porque o Ico quer ser astronauta. A mãe não. Eu tenho certeza que a mãe gostava mais de mim que do Ico. Mas a mãe morreu. Foi enterrada no cemitério. Eu nunca fui lá. Deve ser ruim demais ser enterrado. Agora nossa mãe é a Dona Beth. Ela não gosta que a gente chame ela de mãe. Eu acho que a Dona Beth não gosta nem de mim nem do Ico. O pai falou que a gente vai ganhar uma irmã. Filha da Dona Beth. Eu não sei se quero. O pai vai gostar mais da neném do que de mim ou do Ico. O Ico não quer irmã. Vai tirar dinheiro do cofrinho e fugir quando fizer 8 anos. Duvido que o Ico tenha coragem pra fugir. Mas vai demorar. Porque o Ico tem 6 anos. Pra onde você vai, Ico? Pra casa da vó em Campinas. Mesmo que o Ico tenha coragem o motorista não deixa ele embarcar sozinho. Tem que mostrar autorização do pai. Da mãe não precisa. Porque nossa mãe morreu. Eu acho legal ganhar uma irmã. O pai disse que eu vou ser o padrinho. Não sei se a Dona Beth vai querer. Eu perguntei pro pai o que um padrinho faz. O padrinho cuida da criança. Mas já não vai ter uma empregada só pra cuidar da neném? Eu às vezes cuido do Ico. Quando o pai sai com a Dona Beth. Cuido e também brinco. A gente brinca pra caramba. Tomara que a Dona Beth deixe nossa irmã brincar com a gente. Não sei como vai ser. Porque menina gosta de boneca. Se o Ico fugir só vai sobrar ela pra eu brincar. Eu vou ter que brincar de boneca com ela.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

serões de dona benta

Acordou com síndrome de Dona Benta. Chovia. Internet sem sinal. Nada a fazer.  Convocou pelo celular o neto encapetado e a neta do nariz arrebitado. Tirou da caixa a boneca dos olhos de retrós e o sabugo-visconde. Buscou no quintal o suíno-marquês. Mandou a mucama afrodescendente assar bolinhos de glúten & gergelim e servir chá verde. E fez uma coisa que só se fazia no tempo do onça: sentou-se na cadeira de balanço, abriu um volume qualquer da enciclopédia e leu para as criaturas sentadas em volta, tão ou mais entediadas quanto ela:

Antípatro de Sídon foi o primeiro turista que se tem registro. Lançou a moda de livros do tipo 7 lugares para se conhecer antes de morrer. Antípatro viajou pelo mundo conhecido na época. Ou seja, região da Ásia Menor e norte da África (A Europa era uma roça, a Ásia muito distante, a África uó e a América não descoberta). As anotações renderam o primeiro poema-guia turístico que se tem notícia: “As 7 maravilhas do Mundo”. Vendeu horrores.

Das maravilhas descritas por Antípatro sobreviveu até os nossos dias a pirâmide de Gizé ou Quéops. O resto (A estátua de Zeus em Olímpia, O Templo de Ártemis em Éfeso, Os jardins suspensos da Babilônia, O Mausoléu de Halicarnasso, O Colosso de Rodes e o Farol de Alexandria) foi vandalizado por bárbaros e/ou políticos corruptos, destruído por terremotos e/ou vendido como sucata. Mesmo destruídas, as 7 maravilhas ainda ocupam lugar de destaque no imaginário. E confirmam o epíteto.

A pirâmide, por exemplo. Na época de Antípatro já era antiga (completará 4500 nos próximos dias). É a maior daquelas do papel de parede do Windows, com um beduíno sobre o camelo no primeiro plano. A pirâmide eleva-se a 147 metros das areias do deserto. Altura superada somente no século XIX, pela Torre Eiffel, com 300 e poucos metros.

A estátua de Zeus em Olímpia tinha mais de 12 metros de altura. Tipo um prédio de 5 andares. Toda em ouro, ébano e marfim. Os olhos cravejados de pedras preciosas. Zeus permaneceu quietinho no Peloponeso por 800 anos. Até que um daqueles típicos administradores modernos da época (óbvio, depois de substituir todo o ouro, marfim, ébano por material sintético e as pedras preciosas por bijuterias) transferiu a estátua para Constantinopla. Onde foi destruída por terremoto.

Outro amalucado, saído de um MBA à distância e nomeado gerente de patrimônio histórico e cultural da Secretaria Municipal de Cultura de Éfeso vislumbrou a possibilidade de ter o nome lembrado pelos chefes em promoção futura. Seu plano era reduzir custos de manutenção tocando fogo no templo de Ártemis, o maior e mais suntuoso da época. O projeto deu errado. Demissão sumária e expatriação, muito comum naquela época. Sobraram do templo uma coluna solitária no sítio arqueológico e alguns despojos surrupiados, hoje expostos no Museu Britânico.

Saindo do tema religião e entrando na seara dos grandes amores estão os Jardins suspensos da Babilônia (hoje Iraque) e o pouco conhecido Mausoléu de Halicarnasso. A história dos jardins Suspensos é a mais maravilhosa. Talvez por ser a menos provável. São raríssimos os registros históricos. O poderoso Nabucodonosor II mandou construir os jardins em homenagem à mulher, Amitis, “saudosa das montanhas do lugar onde nascera”. Disse a enciclopédia: “tratava-se de 6 montanhas artificiais, feitas de tijolos de barro cozido, com terraços sobrepostos onde foram plantadas árvores e flores (...) apoiados em colunas cuja altura variava de 25 a 100 metros. Para se chegar aos terraços subia-se por uma escada de mármore; entre as folhagens havia mesas e fontes”.

O Mausoléu de Halicarnasso (atual Bodrum, na Turquia) foi construído pela rainha Artemísia, da Cária. Para abrigar os restos mortais do (ao mesmo tempo) irmão e marido amado, o rei Mausolo.

As 2 últimas maravilhas do mundo antigo eram funcionais e marítimas: O Colosso de Rodes (palavra estranha essa, Colosso), era uma estátua em bronze do deus Hélios. 30 m de altura (regra de 3 simples: se a estátua de Zeus, medindo 12 metros, equivale a um prédio de 5 andares o Colosso equivaleria a 12,5 andares). Os pés do Colosso apoiavam-se cada um em uma das margens do canal de acesso ao porto de Rodes. A piada entre os marinheiros era obrigar os grumetes a olhar pra cima quando o navio passava entre as pernas do Colosso. Além de enfeite bem-dotado, o Colosso carregava uma tocha que servia de farol. O Colosso foi afundado por um terremoto. Muito tempo depois os árabes dominaram a região e venderam o bronze afundado como sucata.

Já o Farol de Alexandria, com 150 metros de altura (metade da Torre Eifell), iluminava os mares até 50 km de distância, por meio de um complexo sistema de espelhos no topo. Depois da pirâmide, foi a maravilha que sobreviveu mais tempo, destruída por um terremoto em 1375.

1 hora depois, o neto encapetado tinha passado a 29ª fase do minigame; a neta do narizinho arrebitado roncava; a boneca dos olhos de retrós e o visconde-sabugo permaneceram mudos e imóveis, como cabe aos seres e objetos inanimados; o marquês-suíno tinha obrado sobre o tapete de fuxico; a mucama afrodescendente, única entretida com a narrativa, deixou queimar os bolinhos de glúten & gergelim. Por sorte a Internet voltou. Depois de atualizar o e-mail, digitou no Google: “Pragas do Egito”. Eram 10: águas em sangue; rãs; piolhos; moscas; doenças nos animais; úlceras; chuva de fogo; gafanhotos; trevas; morte dos primogênitos. Ela e a mania de listas.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

(para t.r. com saudades)

a partir de imagem do blog http://antonioregis.blogspot.com
Tareja, meu bem. Reina Tareja de Pamplona. A pele? Legítima. Verdadeirérrima, querida. Bati o olho e vi que era coisa fina. O marroquino pediu mil euros. Acredita? Me dá um cigarro. Tu acha? Paguei 300. Muita lábia. E lábios. Tá rindo, é? Tudo safado. Aprenda, querida. Não existe almoço grátis.
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Adivinha? A cidade inteira sabia. Menos o pai. Me flagrou com o padeiro. 15 anos. Só não me capou porque a mãe entrou na frente. Me arrepio todinha. Fugi pro Recife. Depois o pão que o diabo amassou em São Paulo. Até dormir debaixo do viaduto. Se não fossem as amigas...
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Glamour, querida. De São Paulo para o mundo. Portugal? Tipo a porta de serviço da Europa. Nem morta. Tu acha? Desperdiçar o corpinho em escudos? Paris era só vôo lotado de extraditadas. Madri foi o destino, entendeu? Vidas passadas. Sangue cigano, querida. A Cleyce botou tarô. Só podia ser Madri.
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A dona da pensão. A madrinha da gente. Escolheu o nome. Do Cabrobó, acredita? Imagina, querida, chegar morta de fome de madrugada, um prato de feijão com carne quentinho te esperando? Só mesmo a Cleyce. Ajudava demais. Anjo da guarda. Travesti entrava e saía o tempo todo. Só pra dormir. Não podia levar ninguém.
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Tinha umas que ficavam amigas. Pegavam confiança. Perigosas. Na primeira oportunidade dopavam a criatura. Limpavam tudo. Dinheiro, roupas, bijus, droga. Tudo que não estivesse aquendado. Aquela história: bicha burra nasce morta. Eu? Nunca. Nem uma agulha.
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Tem cliente de todo tipo. Príncipe? Se existe eu nunca vi. É só sexo, querida. Muita sujeira. E dinheiro. Coisa de bicho. De bicho não. De gente. Mudar de vida? Olhe, não faltou oportunidade. Tu acha? Só em filme. Não dura nem 1 mês. Eu nasci para isso.
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Olhe, querida, eu sempre me cuidei. Droga? Nunquinha. Voltar para a Paraíba? Só morta. Ou por cima de muita carne seca.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

eu conheço carlinhos chialiari

Não sabe quem é o Carlinhos Chialiari? Da novela. Vai se casar com aquela que faz papel de garota de programa e ninguém sabe. Não assiste tevê? Como assim? Em qual planeta você vive? Eu nunca conheci uma pessoa que não gosta de tevê. Eu estudei com o Carlinhos no EJA. Educação de Jovens e Adultos. Pois é.  Não acredita? Aula mesmo que era bom, nada. Altos porres em um boteco na frente da escola. O Carlinhos tinha presença. Era um cara bacana. Super simpático. Usava umas camisas descoladas. A mulherada se rasgava por ele. 5 anos. Tempo pra caramba...

99 vírgula 9 por cento de ator de novela é. A mídia pode até dizer que o cara é o maior comedor, que o cara ta ficando com a fulana, se separando da sicrana. Só pro bando de otária acreditar. Pra não dar na cara. Imagina se as meninas ficam sabendo? A novela perde a audiência, o concorrente cai de pau, o cara perde o emprego, a grana, a mordomia. O cara nunca mais consegue papel decente. Vai fazer teatro pro resto da vida. O Carlinhos mesmo. O namorado atual dele é um cara bem discreto. Assim, tipo você. Já viu foto de algum casal de ator gay na Caras?

Como foi? Ó, eu nunca contei pra ninguém. Eu fui deixar o Carlinhos em casa depois da festa. Amanhecendo. A gente estava doidaço, bebaço, cheiradaço. O Carlinhos estava sem sono. A fim de conversar. Perguntou se eu queria fumar um no quarto dele. Claro. Eu também estava ligado. Carlinhos ficou de conversa mole. Tirou a camisa. Pô, Carlinhos, cadê o negócio? Aí ele chegou bem perto. Pra me beijar. Eu tava desentendido, saca? Pra lá de Marakesh. Não nego. Eu pensei se valia a pena deixar rolar. Sabe como? Experimentar. Mas meu negócio é mulher. Na hora H eu bloqueei. Não rolou. Eu segurei a mão dele. De boa, cara, pára com isso, nada contra, só não estou afim. Não vamos estragar a amizade por besteira.

Daí o Carlinhos se afastou. Eu comecei a namorar a Vera. Ele se matriculou na escola de teatro. Desapareceu do EJA. Cada um no seu rumo. Um dia, de repente, sem mais nem menos eu vejo ele lá, na novela. Me deu um troço estranho. Tipo uma emoção. Chamei a Vera. Caraca! Vera, esse cara estudou comigo. Como eu sei que a Vera até hoje não acredita, eu zoo com ela. O Carlinhos Chialiari era afinzão de mim, rolou um clima, se eu tivesse dado mole, se eu não fosse hétero eu tinha me arranjado, quem me mandou me casar com você. Aí a Vera fica pê da vida.

Ta bom. Chega de te alugar com esse papo. Você tem lugar? Tá a fim de quê? Menos beijar.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

lindinha

As matronas concentradas no jogo:
- Lindinha, busca o cigarro e o isqueiro na bolsa da tia?
Volta com o cigarro aceso.
- Que graça! 5 aninhos e já sabe acender... Qualquer dia a tia te ensina a tragar.

quo vadis

Cabeça torta. Arcada estreita. Dentes encavalados. Em consequência do parto a fórceps. Para completar, olhos de sanpaku. Jabuti. Condenado ao isolamento eterno.

Como refúgio a Roma do legionário Marco Vinício. Nome que escrevia em letras góticas junto ao de Calina, dentro de um coração flechado, caneta vermelha na carteira. Às vezes em giz no quadro. Antes dos colegas chegarem.

Calina. Na vida real Solange. Cabelos compridos. Olhos pretos. Esbugalhados como os dele. Só que Solange era linda. Solange & corações preenchendo linha a linha a folha inteira do caderno.

O papel na mão da galera do fundão. Coro e cascudos da turba: Jabuti Jabuti Jabuti. Encolhido no canto. A cabeça, os bracinhos enfiados no casco. Que nunca chegasse às mãos, aos ouvidos de Solange.

Chegou. Atrasada. A lígia Calina segurou o papel. Nem se deu ao trabalho de escarnecer. Reles Jabuti. Picou o papel sobre o monturo encolhido. Sentou-se na primeira carteira. O trono da princesa. E nunca mais olhou para trás.
 
(Quo Vadis é um romance do escritor polonês Henryk Sienkiewicz – 1846/1916, ambientado na Roma Imperial, à época de Nero, cujo tema é a perseguição aos cristãos).

de que são feitos


De que são feitos os meninos?
De que são feitos os meninos?
Rãs, caracóis, rabinhos pequeninos.
Disso são feitos os meninos.
De que são feitas as meninas?
De que são feitas as meninas?
Doces, perfumes e outras coisinhas finas.
Disso são feitas as meninas.

de: O Mundo da Criança. Adap. M. L. Figueiredo. 

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

o livro das trevas & outras hipóteses escatológicas

Comentários sobre o controverso romance autobiográfico “O Livro das Trevas & outras Hipóteses Escatológicas” da estreante Amaryllis Penafuertes (à moda de Paulinho Assunção)

“Livros como esse deveriam ser proibidos”.
...

“Há que se contabilizar os danos irreparáveis provocados pelo simples manuseio dessa aberração literária por nossos jovens”.
...

“O Mal caminha por sendas tortuosas e aproveita-se de qualquer descuido. Como, por exemplo, a publicação dessa história execrável”.
...

“Eu vomitei quando li”.
...

“Pura perversão! Lixo impresso! Detrito!”
...

“Difícil compreender uma moça inteligente, esclarecida, culta e de princípios deixar-se degradar, a ponto de passar fome, dormir literalmente na sarjeta, adoecer, humilhar-se, roubar e até mesmo prostituir-se pela simples necessidade de inocular no organismo substâncias cuja única função é destruir o corpo e o espírito”.
...

“Angustiante. Instigante! Único! Original!”
...

“Ombreada a Dante ou os grandes Malditos, a autora mergulha nos assustadores círculos de seu inferno pessoal e emerge, trazendo à luz obra muito além do seu tempo!”
...

“Li, gostei e recomendo”.
...

“A estreante e já outsider Amaryllis Penafuertes consegue transformar Os 120 dias de Sodoma em historinha pra boi dormir”.
...

“Morri de rir...”
...

“A autora não saiu da fase anal. Talvez por isso o prazer sádico de utilizar-se das palavras para modelar seus próprios excrementos verbais”.
...

“Após superar o horror das primeiras linhas o leitor é fisgado pela narrativa concisa e crua e se deixa perder pelos labirintos inusitados que a autora percorre a cada parágrafo”.
...

“A literatura tem desses mistérios... Esperar tanto tempo para nos deleitar com uma obra que certamente terá o seu lugar entre os grandes romances da literatura universal”.
...

Unpleasant! Unbelievable. Great! Purely fabulous!
...

“Uma lição de perseverança e força de vontade para superar as piores adversidades”.
...

“Ainda têm coragem de denominar isso de literatura...”

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

love story


eu queria cuidar de você, te fazer cafuné, massagear seus pés, você gosta tanto, queria aquecer a água antes do seu banho, te trazer flores, chocolate, bichinho de pelúcia, te dar o remédio na hora certa, te levar ao dentista, ao dermatologista, ao psicólogo, queria passear com você no centro ou no calçadão se fizesse sol, se chovesse eu queria te levar ao antiquário, ao shopping, à galeria de arte do seu amigo, eu queria comprar uns cds e dvds que você gosta, ouvir música abraçadinho, assistir filme comendo pipoca e tomando refrigerante, queria que a gente preparasse juntos aquele prato sofisticado, acompanhado de um bom vinho, nas taças do chá-de-casa, fazer bolo de nozes, eu queria dormir depois que a gente fizesse aquilo gostoso 2 vezes, eu queria morar com você em uma casinha de janelas azuis e jardineiras floridas de violetas, isolados do mundo, queria te ver acordar, colocar a mesa do café da manhã, esquentar o pão integral no forno, espalhar os vidros de geleia e manteiga sobre a mesa, as xícaras, os talheres, juntar os farelos, espremer as formigas com a ponta dos dedos, te ver caçando os pernilongos ao anoitecer, verificando as trancas das janelas e das portas, eu queria te esperar chegar da rua, te perguntar por onde, com quem você andou a tarde toda, eu queria te entender, ler os seus pensamentos, adivinhar as suas vontades, os seus desejos, descobrir os seus segredos, as suas senhas, eu queria abrir a sua correspondência, ler os seus e-mails, o seu diário, saber o que você escreve sobre nós, queria ouvir as suas conversas ao celular, as mensagens, eu queria ter dinheiro para te bancar, te dar uma mesada maior que o seu salário, me demitir pra ficar junto com você mais tempo, o tempo todo, pra você não precisar de ninguém, não precisar conversar com mais ninguém, pra você não olhar pra mais ninguém a não ser pra mim, o único que te dá valor, atenção, eu queria que você não questionasse, não discutisse, não me constrangesse, não me pressionasse, que a gente vivesse em harmonia, entendesse um ao outro sem precisar conversar, sem discutir a relação, queria que tudo fosse claro entre a gente, como antes, eu queria que você nunca mais repetisse isso, nunca mais me dissesse esse tipo de coisa, que eu te sufoco, queria que você não abrisse as janelas, eu não queria que você se alterasse, queria que você parasse de gritar, eu nunca te vi assim, fora de si, eu queria te ver sorrir de novo, ouvir de novo que você me ama, que eu sou o seu sol em câncer e que você é minha lua em leão, queria que você gozasse quando eu tocasse a sua kundalini, queria entender porque você se calou de repente quando abriu a carta da torre, porque parou de gritar, queria que você parasse de sangrar, dói muito a faca enfiada na sua barriga?

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Beto


Mania de invocar desgraça. Qualquer motivo. Cebola. Brinquedo estragado. Escola. Bronca do avô. Não chama que ele vem. E veio. No dia do natal. Embirrou. Desgraça! A bike não era da cor, da marca, do modelo tal. Mas novinha em folha. Saiu pedalando. Ruas vazias do feriado. A corrente escapuliu. Logo no beco. Mão lambrecada de graxa. Que inferno! Ninguém por perto. Arrepiou sem nem ver. Chamou? Precisando de ajuda? A voz surgida do nada. Sapato, terno, camisa, gravata, cavanhaque, chapéu. Tudo preto. Chifre e cotoco de rabo? O dedo prendeu na catraca. A risada. Exu. Trancarrua do quartinho. Em carne e osso. Soube sem saber. Não olhar. Não responder. Muito menos encostar a mão. Pensou no avô. Na mãe. No anjo da guarda. Nos bracinhos do menino Jesus do presépio. Tremendo. Quando viu estava na rua de casa. Voando na bike. Consertada não se sabe como. Branco. O moleque viu assombração? Correu para o banheiro. Nunca mais palavra feia na boca.

Paré


Quando eu era criança não tinha medo de escuro. De altura. Bicho papão. Capeta. Mula-sem-cabeça. Caveira. Cemitério. Da Rosângela que batia nas meninas e até nos meninos maiores. Da professora. Polícia. Macumbeiro. Do primo que forçava a fazer bobagem. Não tinha medo de ser adotada. De adoecer. A mãe morrer. Ser largada no orfanato. Virar mendiga. Só do pai. Quando chegava do serviço bêbado no sábado.

Riquinha


Se eu ganhasse um milhão eu comprava uma casa. No Gama. Com um quarto só pra mim. Outro pro Nino. Enchia o quarto do Nino de brinquedos. Igual no Gugu. Pagava uma plástica pra mãe tirar a mancha da testa. Ajeitava o barraco da vó e do vô. Não. Buscava a vó e o vô pra morar com a gente. Abria uma conta no banco pro pai. Com talão de cheque e cartão. Comprava um carro com toca-cd e tevê e ar condicionado. Contratava um motorista até o pai aprender a dirigir. Uma empregada pra cuidar do Nino. Guardava uma parte pra cadeira de rodas do Nino. Outra pro tratamento. Arranjava um cachorro de raça. Um cachorro não. Pluto e Nininha. Só dava carne e ração pros cachorros. Levava todo mundo pra almoçar na churrascaria todo domingo. Sábado também. Mandava lavar a rodoviária. Prender os meninos do crack. Jogava todas essas paçoquinhas no bueiro. E ia pra casa antes das 11.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

colagem com saltadores do dream exchange

a cama da princesa acorrentada - final



Com Armando estava sendo diferente. Relação madura. Sólida. Com cara de durar para o resto da vida. Talvez pelo fato de morarem em casas separadas. Um no apê do centro. O outro em um loft na Nova Barra.

Um belo dia Armando propôs uma loucura. Paulinho topou. Morarem juntos. O dinheiro do aluguel dos respectivos imóveis pagaria o aluguel de uma cobertura. Com vista para o mar.

Paulinho estava feliz. Armando também.

A cama da princesa acorrentada ressuscitou durante a mudança de Paulinho. "Que cama linda!" - Armando exclamou. Paulinho contou a história. Tanto tempo depois.

Pasmem, leitores, com as voltas que o mundo dá. Creiam na força do Destino. Nunca duvidem dos desígnios ocultos dos deuses. Dobrem-se sob o poder & a força da Lei do Eterno Retorno. Etcétera.

Armando conhecia a embaixatriz chiquérrima. Era amigo do filho dela. Viam-se pelo menos 2 vezes por ano. Quando Armando ia a Nova Iorque. Ou quando Adèle e o filho vinham passar o verão no Brasil.

Faltava 1 mês para o verão.

Armando resgatou a cama do esquecimento. Restaurou. Da mesma forma como Ricardinho fez. Há tantos anos atrás. Paulinho contra-argumentou: essa cama tem urucubaca. Armando riu.

Armando tinha muito bom gosto. Paulinho também. A cama ficou linda no quarto da nova casa. Que foi inaugurada no verão. Com a presença de Adèle, a ex-embaixatriz chiquérrima.

Adèle quase teve um piripaco quando viu a cama.

A cama da princesa acorrentada foi a sensação do jantar. Adèle confirmou parte da história do Carvalho. Um intenso e impossível e louco e arrebatador amor de juventude. Daqueles que a pessoa pensa em abandonar tudo para viver até as últimas consequências. Amor que só não virara escândalo porque o corpo diplomático abafou.

Porém, a parte da princesa acorrentada era pura fantasia. Do Carvalho. Ou de Paulinho. A cama tinha sido presente de casamento. Ou tinha sido comprada no Marché aux Puces, na época de estudante. Ou de um antiquário em Buenos Aires. Ou encomendada pelo embaixador. Adèle não se lembrava.

Depois, para amenizar o clima, acrescentou detalhes engraçados e picantes. Que só as embaixatrizes chiquérrimas conseguem narrar em público sem resvalar na vulgaridade. Todos riram muito. Na sacada da cobertura. Até o dia nascer. E todos se despedirem. E Paulinho e Armando dormirem. Na cama. Que não era mais da princesa acorrentada.

Acordaram às 2 da tarde. Com Adèle chamando ao celular. E viverem felizes para sempre.

sábado, 8 de outubro de 2011

a cama da princesa acorrentada - 3

Paulinho não se consolava. Emagreceu 1,5 quilos. Coitadinho. Dormia mal. Chamava por Ricardinho no pesadelo. Abraçava o travesseiro. Culpava a cama pela insônia. Pelos sonhos ruins. Pela separação. Urucubaca, pensou. Inveja. Energia negativa acumulada.

Paulinho não acreditava. Mas procurou uma vidente. Que vaticinou: era a alma penada da princesa acorrentada rondando. Reclamando a propriedade. Querendo dormir na cama. A vidente receitou um ebó light: espargir no quarto sal aromatizado, pétalas de rosas brancas secas e eau-de-cologne. Para a alma se desapegar. E descansar por toda a eternidade.

Paulinho fez tudo direitinho. Assim, pelo poder do ebó ou por autossugestão, dormiu bem. Por via das dúvidas comprou uma cama box super-king com colchão de mola ensacada. Travesseiros de astronauta. Desarmou e guardou a cama da princesa acorrentada no quarto da empregada que servia de depósito.

Os anos passaram-se. O Carvalho morreu de cirrose. A Divina, já avó, mudou-se para o Méier com as filhas e o neto. Ricardinho nunca mais deu notícias. A cama empoeirando no quartinho.

Paulinho estava com 40. Às vezes sozinho, às vezes casado, às vezes sozinho de novo. Depois de Ricardinho foram 3 relacionamentos sérios: Kaká, 32 anos, massoterapeuta e ator (4 anos juntos); Bernardo, 23, surfista (8 meses); e Armando, 44, empresário (8 anos no próximo mês).

(continua)

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

casa nova

Casa nova, e linda. Desde ontem. Sob os melhores auspícios. 3 joões-de-barro barulhentos fazendo a festa nas árvores; o dia cinzento abrindo-se, no fim da tarde, em uma luz amarela, transparente e muito cenográfica; um arco-íris (axé!) de 180 graus antes de anoitecer; champanhe trazida pelo filho e brinde com as 2 pessoas mais queridas deste mundo; lagartixa na área de serviço; crisálida no forro; e um vagalume piscapiscando no quarto depois das luzes apagadas...

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

a cama da princesa acorrentada - 2

Aí Paulinho e Ricardinho entram na narrativa. Um casal gay. Daqueles estereótipos de novela das 9: bonitos, charmosos, elegantes, bem sucedidos, com leve vocação underground. Porque com a grana gasta na reforma do velho apartamento sem garagem herdado por Paulinho, ali, no centro decadente da cidade, comprariam um loft bacanérrimo na Nova Barra. Aquela história: gosto não se discute.

Paulinho era capricorniano. Ricardinho, designer de moda. Ricardinho era loiro-pêssego. Paulinho gostava de viajar e fotografava como hobby. Ricardinho às vezes pulava a cerca. Assim construíam a vida em comum. 4 anos, já.

Ricardinho notou a cama acorrentada na pilastra do sobrado em frente desde o primeiro dia. Quando levaram o arquiteto para tirar as medidas. Pensou em procurar o dono, oferecer uma graninha, restaurar e instalar a cama na suíte do casal. Depois esqueceu, atarefadíssimo com a coleção para o primeiro desfile no International Fashion, em Vitória, no Espírito Santo. Mas isso não vem ao caso.

Paulinho era responsável por conduzir a reforma. Comprar material. Conversar com o arquiteto. Fiscalizar os pedreiros. Pagar as contas. Etcétera. Via a cama acorrentada todo dia. Nem dava bola. Até fez amizade com o Carvalho, que conhecera seu avô.

Apê reformado, decorado e limpo, mudaram-se. Um belo dia, no almoço, Ricardinho lembrou-se da cama. Paulinho adorava fantasiar. Contou a história ouvida diretamente da fonte, do Carvalho. Ricardinho encasquetou: "essa cama tem que ser nossa".

Convenceu Paulinho a negociar com o Carvalho. Com o Carvalho? Não, Paulinho, você tem que falar com a mulher dele, a manicure, como se chama? Divina. Oferece 500 reais. Duvido que recuse. Não vai deixar passar a oportunidade.

A Divina era jogo duro. Queria 800. Fecharam por 650. Paulinho ainda levou de brinde um criado-mudo. Que não tinha nada a ver. Quando soube, o Carvalho quis desfazer o negócio. Porém, quando a Divina mostrou as 6 notas de 100 e a de 50 novinhas, conformou-se.

Ricardinho restaurou a cama. O que era preto-esverdeado virou dourado-pálido. As barrinhas de de bronze, as guirlandas delicadíssimas tinindo, reluzindo. Ressaltadas pela colcha bordada de seda cor-de-vinho. Da Turquia.

Ricardinho fazia questão de mostrar o quarto para as visitas, os amigos, as mães dos dois. Paulinho não se cansava de repetir, com rocamboles dignos de Scheerazade, a história da cama da princesa acorrentada. As visitas, os amigos, as mães se emocionavam. Desejavam que a cama trouxesse muitas felicidades para o casal.

E trouxe. Talvez mais felicidade que a vivida pelo Carvalho e pela embaixatriz. Ou talvez ainda, sabe-se lá, mais felicidade que a da princesa de ébano, antes de ter sido capturada e escravizada e despojada e desembarcada na Bahia, há mais de 1 século atrás.

A felicidade de Paulinho e Ricardinho durou o que tinha que durar. 6 meses. Ricardinho conheceu um italiano. Foi morar em Milão. Deixando Paulinho no apartamentaço. Dormindo sozinho na cama da princesa acorrentada.

(continua amanhã)

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

a cama da princesa acorrentada - 1


Era uma vez uma cama. Antiga. De bronze. Linhas simples e clássicas ao mesmo tempo. Além das barras horizontais e verticais da cabeceira, apenas uma faixa com guirlandas muito delicadas. O metal todo cinzento e esverdeado pelo tempo.

A cama tinha uma história. Ou uma lenda. Teria pertencido a uma princesa Africana. Capturada e vendida como escrava na Bahia. Herdada e trazida para o Brasil, 1 século depois, pela embaixatriz chiquérrima.

E era uma vez o Carvalho. O Carvalho devia ter sido um galã nos bons tempos. Porque ainda tinha o seu charme. Mesmo com o barrigão exposto pela camisa desabotoada.

Contava a lenda que quando o Carvalho ainda era bonitão, ele trabalhara para a embaixatriz chiquérrima. O Carvalho tinha sido amante da embaixatriz chiquérrima. Ao voltar para o país de origem ao fim da missão diplomática, a embaixatriz chiquérrima teria dado a cama de presente ao Carvalho. Como lembrança dos momentos maravilhosos compartilhados.

Qual seria então a razão da cama, tão carregada de afetividade, estar ali, exposta às intempéries, empretejando, acorrentada a uma pilastra, em uma ruela no centro da cidade?

Por causa de Divina. A legítima esposa e mãe das 5 filhas do Carvalho. Com toda razão corrompida pelo ciúme, Divina nutria ódio mortal pela cama. Nunca dormiu nem dormiria nela. Nem morta.

Divina não imaginava o valor econômico da cama. Aquela velharia. Conhecia só o valor sentimental. Para o Carvalho, é claro. Por isso acorrentou a cama. Bem na frente da porta da frente da casa. Na pilastra da marquise. Como um espinho aguilhoando as lembranças do Carvalho. Como um alerta, a si mesma, para não descuidar do marido.

(continua amanhã)

domingo, 2 de outubro de 2011

rock brasília - saudosismo, história ou pretensão?

Mesmo ultimamente avesso a grandes agitos, fui hoje ao Festival de Cinema assistir ao Rock Brasília, documentário de Vladmir Carvalho sobre o Capital Inicial, Plebe Rude e Legião Urbana, 3 bandas de rock que projetaram Brasília no cenário nacional da música (!) nos anos 80.

Nunca fui roqueiro. Nunca fui fã empolgado de nenhuma delas. Muito pelo contrário. Na época eu achava serem um bando de filhinhos de papai (expressão típica brasiliense) e de diplomatas bonitinhos fazendo um sonzinho inspirado em bandas inglesas debaixo do bloco. Exceto as letras quilométricas do Renato Russo, tudo era meio palha.

Mas me emocionei. Desde o discurso do diretor, antes do filme. Ou, melhor, do professor. Que ao invés de falar sobre o documentário, elogiou o trabalho de um dos alunos da época da universidade.

Sala lotada. Como nos velhos tempos, sentamo-nos na escada. Eu, uma amiga e meu filho.

O documentário começa com os pais e mães dos integrantes das bandas contando histórias sobre seus respectivos rebentos. Ops, um filme sobre rock com idosos? Em seguida os próprios popstars, hoje quarentões, lembrando de quando tinham 15 anos. Entrecaladas, cenas da história brasiliense recente. Ou nem tanto. Dos últimos 30 anos.

Para um não-fã, a fala dos roqueiros não era o principal. Eu nunca soube mesmo quem era quem, quem tocava o que, a qual banda pertencia um ou outro. O incrível era a sensação de ter estado presente. De ter participado. De também ter feito parte daquele momento da história.

E as cenas/entrevistas antológicas se desenrolando. Por exemplo, o depoimento de J. Pingo, que dirigiu Renato Russo em uma montagem teatral lá por 1985. O General Newton Cruz explicando porque brandia o chicotinho histérico sobre os motoristas na carreata pelas Diretas Já. Ou a manifestação contra a visita de Henri Kissinger à Universidade de Brasília.

É, eu estava lá. Em cada um daqueles momentos. Eu vivi aquilo. Frequentei aqueles lugares. Aqueles shows. Convivi com aquelas pessoas. A peça do Pingo. A carreata. A manifestação contra Kissinger (performático, rosto pintado de branco, mecha azul no cabelo, um torso de manequim envolto tule cor-de-abóbora, valham-me Apolo & Dionisos!). Era como se eu estivesse na tela.

Mas o mais emocionante ficou para o final. Vladmir pergunta a Briquet de Lemos, pai de dois homenageados, o que ele extraiu daquela época. Briquet sem palavras. Não se contém. Chora. Por fim consegue articular uma frase: que aquilo foi um aprendizado. Que ele aprendeu com os filhos.

E eu com meu filho ao lado. Emocionando-se comigo. Apre(e)ndendo aquele passado da mesma idade dele. Passado que o pai também fez acontecer. Passado que ele, mesmo sem entender bem, fez parte.

Saímos em silêncio. No meio da multidão barulhenta. Eu, a amiga, o filho. Chovia em Brasília.