quarta-feira, 27 de julho de 2011

Futebol


Já não sobrava no zerinho-ou-um. Até que não agarrava mal. Sorte jogar com os maiores. E contra time fraco: a bola nunca chegava na área.

O melhor amigo era o Xande. Artilheiro. 17. Bonito como o vampiro do filme. Calção justo, cabelos compridos e olhos verdes. Ultimamente andava pra cima e pra baixo com o Gordinho e o Gordão.

Perderam. 4 a 1. Nada demais, dia da caça, dia do perdedor. A não ser os ânimos esquentados. Das meninas da torcida. Do time. Até o Xande. Goleiro frangueiro. O coro: Bicha. Bicha. Bicha.

Bicha? Chorou de raiva. Nunca mais olharia o Xande na cara.

A semente do ódio germinou no esterco do coração arrebentado. Se pudesse, matava o Gordinho, matava o Gordão. Chantageava o Xande. Fugia com o Xande para a ilha. Acordou melado.

Revanche no sábado. O Xande escarneceu. Se frangar toma porrada. Levou o primeiro. Falha da defesa. Não esperou o segundo. Avançou para o zagueiro. Cego de ódio. Murro bem no meio das fuças do Gordinho.

O Gordão veio. Outro soco atravessado. Quase acertou-lhe o olho. A galera atiçando. Deu e levou porrada até dizer chega.

Por fim, separaram. Tonto. Sujo. Surpreso com aquela força. Vinda de onde? Olhou bem dentro dos olhos do Xande. Se fosse no filme terminava em beijo. A palavra "fim" escrita em branco no preto da tela.

Não era. O Xande encarou. Seu bicha!, cuspiu.
Depois disso nunca mais jogou futebol.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Jonas, parte 3 de 3

Gustave Doré - Jonas rejeté par la baleine

Quem se lembra da história de Pinóquio? Da parte onde ele é engolido pela baleia? Com Jonas aconteceu igual. Caiu do barco direto na boca do bicho. Permaneceu 3 dias e 3 noites dentro do peixe. Uns dizem que era baleia. Outros, um tubarão gigante. Outros ainda, precavidos, falam só em um grande peixe (kétos, em grego), sem especificar. De um fato ninguém duvidava: o peixão era outra novidade de Javé.

(Tá, é meio mirabolante, ninguém acredita que alguém sobreviva após ter sido engolido por um peixe. Pesquisei. Está no Google: tubarão gigante existe. Pode atingir 20 metros de comprimento. 3 toneladas. Dentro do tubarão gigante cabe, folgado, uns 3 Jonas. Outro bicho plausível seria o cachalote. O Google conta peripécias parecidas à de Jonas vividas por um marinheiro irlandês. Fala que o espaço interno do cachalote é do tamanho de um loft mobiliado: conforto máximo em espaço mínimo).

Pinóquio acendeu uma fogueira no bucho da baleia. A fumaça fez o bicho tossir e espirrar, expelindo-o, junto com o Grilo Falante e Gepetto na praia. Com Jonas foi parecido. Na terceira noite o celular tocou. Era Javé. Perguntando se Jonas tinha aprendido a lição. Se estava preparado para se apresentar no escritório em Nínive na primeira hora da segunda-feira.

Sim, estava. O kétos cuspiu Jonas na praia. Jonas correu para Nínive. Demonstrou eficiência. Em pouquíssimo tempo coroou a missão de sucesso..

Mas intimamente Jonas estava insatisfeito. Achou que a rapidez na superação das metas tinha o dedo de Javé. Que a adesão dos ninivitas ao Plano era fogo de palha. Quis pagar para ver os antigos inimigos de Israel voltarem a cometer as atrocidades contadas na parte 1. E serem finalmente destruídos pela ira de Javé. Demitiu-se.

Javé não queria perder aquele gerente promissor. Convenceu-o a tirar uma licença sem vencimentos.

Jonas alugou uma tenda no alto do morro, de frente para Nínive. Para assistir de camarote a cidade desandar.

Javé arquitetou outro plano. Daqueles pouco convencionais. Embasado em técnicas administrativas modernas. Outra lição para Jonas. Mandou por sedex uma muda de aboboreira. Não daquelas aboboreiras rasteiras, de talo oco, folhas largas, peludas, flores amarelas. Javé tinha espírito de artista. Era uma árvore de abóboras. Tipo jaqueira.

Jonas achou o máximo. Mal enfiou as sementes na terra, puf! a árvore cresceu. A ponto de lhe sombrear a testa. Jonas passou o dia adubando, aguando, podando a árvore para no dia seguinte colher abóboras maduras. Nem pensava mais na raiva que sentia dos ninivitas.

À noite, enquanto Jonas dormia, Javé mandou lagartas devorarem a aboboreira. Só deixaram o tronco.

Era verão no deserto. Calor de rachar. Secura. Jonas devia estar desidratado. Desfaleceu de desgosto ao ver a aboboreira seca. Ao ver que os ninivitas continuavam adeptos ao Plano de Javé.

Javé já esperava por aquilo. Encontrou Jonas desmaiado. Delirando:
- Eu quero morrer! – Jonas murmurou.
- Morrer porque? – perguntou Javé.
- Porque a aboboreira tão linda morreu de repente.
- Pô, não é incoerência desejar morrer por causa de uma aboboreira e não estar nem aí para os habitantes de Nínive? – Javé retrucou.

Jonas entendeu o subtexto. Cancelou a licença não remunerada. Foi trabalhar na Seção de suporte e manutenção do Plano de Javé, em Nínive. Dizem que o crescimento do empreendimento na região foi estratosférico.

sábado, 23 de julho de 2011

Jonas, parte 2 de 3


Jonas - Aleijadinho - Ouro Preto
Mal o navio abandonou a costa de Jaffa, o ar ficou carregado. O tempo virou. Ventania, nuvens pesadas, relâmpagos, trovões, ondas encapeladas. O navio oscilava a ponto de emborcar. O capitão e os marujos apavorados tentavam aprumar o leme, remendar a vela rasgada pela força do vento. Os feitores chicoteavam os remadores com mais força. As sirenes soavam. O sistema de comunicação entrou em pane. A bússola desgovernou. Cena de Titanic. 
E Jonas? Apagado, na cabine, ressonando como um cordeirinho.
Os passageiros corriam como baratas tontas no convés, vomitavam nas amuradas. Imagina se eles tivessem visto os tubarões rondando o barco - o caos seria total. Todo mundo implorando ajuda do além: Alá, Iansã, Buda, Ganesha, Tupã, Rá, Assur, Odin, Zeus, Júpiter, Quetzalcóatl, e nada da tempestade amainar. Só não se ouvia o nome de Javé. Foi quando o capitão se lembrou do hebreu embarcado em Jaffa. 

Jonas acordou atordoado. Quando o capitão relatou a fúria da tempestade e a tragédia iminente, Jonas sacou na hora: aquela reação era típica de Javé. E somente ele, Jonas, por ter fugido da missão, dos desígnios, era o culpado. Tentou ligar para o chefe, pedir para amainar a tempestade. Droga, sem sinal. Bom, o jeito era ajudar o pessoal lá em cima, no convés.

Os marinheiros tinham aliviado toda a carga do navio no mar. Jogaram móveis, bagagens, decoração, tudo que fosse supérfluo. Estavam tão malucos que tiravam zerinho-ou-um para escolher o primeiro dentre eles a ser atirado ao mar. Peraí, peraí, Jonas interrompeu. Assumiu a culpa. Ofereceu-se. Os marujos nem pensaram duas vezes. Jogaram Jonas ao mar.

Tiro e queda. A tempestade cessou na hora. O sol voltou a brilhar. O navio seguiu o rumo.

Tchau, Amy




sexta-feira, 22 de julho de 2011

Jonas, parte 1 de 3

Jonas e a Baleia, imagem do blog http://velhariasdoluis.blogspot.com

Vira e mexe o segmento humano da criação irritava Javé. Dessa vez a confusão era em Nínive. Mais ou menos onde hoje se situa o Iraque.

Os ninivitas eram o tipo de gente que ninguém queria ter próxima. De longa data rolavam picuinhas na vizinhança. Principalmente com os hebreus que, como todo mundo sabe, eram os filhos prediletos do papai Javé.

Ai de quem reclamasse. Era guerra na certa. Sangue. Carnificina. Os ninivitas faziam picadinho dos vencidos. Depois erguiam pirâmides com as cabeças decepadas. Também gostavam de crucificar prisioneiros. Ou empalar. Antes arrancavam-lhes os olhos e a língua. Direitos Humanos? Papo de boiolinha helênico.

Os maus hábitos dos ninivitas se assemelhavam aos dos sodomitas descritos anteriormente. Além disso, eram acusados de enriquecimento ilícito. Por causa dos despojos de guerra. Javé tinha dado uma chance, outra e outra. Nada da situação melhorar. Estava por aqui (punha a mão esticada na altura da garganta) com os ninivitas. Faltava menos da metade da metade de 1 gota d’água para o copo transbordar.

Javé pensou em uma saída. Analisou todos os ângulos da questão. O insight veio. Lá pelas 3 da madrugada:

a) Apesar de vultuoso, o empreendimento “criação” ainda era tímido. Mal atendia à demanda dentro das fronteiras de Israel.

b) Nínive era um centro econômico e cultural importante da região. Capital do Império Assírio. Demorava-se 3 dias úteis para atravessar a cidade à pé. Estrutura turística de 1º mundo. A biblioteca de Assurbanipal tinha o maior acervo de plaquetas com escrita cuneiforme. Os melhores espetáculos nos anfiteatros e circos. Arquitetura ousada. Galerias de arte internacionais. Resorts sofisticados às margens do rio Tigre, nos moldes de Babilônia. Referência gastronômica em todo o Oriente Médio e Próximo. Etc.

c) A equipe chefiada por Javé era composta por Profetas masters, sêniors e alguns júniors. Atuavam em sua totalidade na parte administrativa, burocrática, com pouca interação com o público.

Porque não realizar uma megacampanha em Nínive?, Javé pensou. Conquistaria nicho importante do mercado externo; milhares de novos adeptos e/ou simpatizantes; e ainda poupava os ninivitas do destino de Sodoma e Gomorra.

A estratégia publicitária era simples: 1) ameaçar de destruição nos principais veículos de comunicação; 2) estipular prazos: 40 dias, nem 1 minuto a mais; 3) enviar um gerente para convencer a população a se converter; 4) demonstrar magnanimidade; e 5) não destruir.

O gerente responsável pela campanha seria Jonas, o novato. Que era sindicalizado. Briguento. Nacionalista radical. Turrão. Que não suportava o domínio dos ninivitas na região. Que ainda não tinha pegado o jeito do serviço. Que não tinha muito o que fazer. Que tinha potencial, mas precisava ser moldado.

Sexta-feira à tarde. Jonas engavetara os processos da semana. Estava pê da vida porque Javé tinha marcado uma reunião, tipo evento corporativo, no oásis. Justo no shabbat! Irritantes os métodos administrativos modernos de Javé. O jeito era obedecer.

Depois de apresentar o novo projeto de expansão, Javé determinou as funções. A Jonas coube (no jargão de Javé) adivinhem o quê? O desafio de converter Nínive.

Logo Nínive, que espoliava, escravizava e maltratava os hebreus desde que Jonas se conhecia por gente.

“Eu quero é mais que Nínive seja destruída!”, ele desejou. Quis declinar. Não teve coragem. Contradizer Javé era demissão sumária. Ficou de pensar. De responder no primeiro horário da segunda-feira.

“Caramba”, Jonas pensou. “Porque eu? Porque Javé mesmo não cuidava do assunto?” Imaginou a dificuldade que enfrentaria em convencer aquele povinho uó de qualquer coisa que fosse. “Pô, se quisesse, com um telefonema Javé resolvia o problema!”.

Ao invés de pedir dispensa da missão, Jonas tirou um atestado médico. 15 dias. Comprou passagem em um cruzeiro marítimo em Jaffa e partiu no dia seguinte. Em direção oposta a Nínive. Para Társis, na exótica Espanha. Lá, pensou, Javé nunca o encontraria.

O embarque se deu em uma manhã ensolarada. Com medo de ser descoberto Jonas nem quis permanecer no convés, usufruir das diversões do navio: cassino, piscina, shopping, shows. Comprou a cabine mais escondida no andar mais inferior, no corredor menos movimentado possível. Mal desfez as malas, deitou-se e dormiu.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Entressafra, culpa e outros males

Esforço inútil, procrastinação e blasfêmia:
Tem uma porção de historinhas bíblicas na fila. Mesmo quase ateu desde criancinha, elas me fascinavam. Adoro recontá-las. Já era para ter publicado a nova, que, permitam os deuses, saia amanhã. Mas bloqueei. Quanto mais eu me esforço, mais o texto enfraquece. Insegurança culposa: estariam ferindo susceptibilidades religiosas? Desrespeitando fatos e personagens?

Mea culpa:
Confesso 3 erros imperdoáveis em menos de 24 horas. Cometidos por pura falta de atenção:
a) "servil" ao invés de "serviu", pretérito perfeito de "servir";
b) "subssolo" - assim mesmo, com "ss", por paranoia (ou paranóia?) com as novas regras do hífen;
c) pasmem! "flexa" - com "x".
Ainda bem que ninguém leu... Ou se leu, condescendeu...

Outra culpa:
Também adoro as colagens. No velho estilo escolar: revistas, cola, tesoura, papel A4. Como típico contemporâneo, substituí tesoura e cola pelo photoshop; papel pelo monitor; e revista por internet. Agora, depois de velho, rolou sentimento de culpa. Por causa do direito autoral alheio. Solução pouco plausível: linkar na legenda o endereço de cada pedaço photoshopado. Seria mais ou menos como anotar no verso do papel A4 das antigas os títulos e as páginas da revista. Perderia a graça. Por isso suspendi temporariamente a produção. Até a culpa passar.

Escapismo:
Final de semana inteiro baixando miles de músicas no umquetenha e filminhos no gayload. Músicas, só nota 10. Filminhos: até agora nenhum acima de 7. Draminhas bobos, suspenses mornos, comédias sem-graça, cenas picantes insossas, roteiros fracos, personagens rasos, finais previsíveis, assim por diante. Salvam-se os atores - interpretações sofríveis mas cada bundinha, cada rostinho que nem me fale...

Conselho do tarô:
Ficar quietinho até a crise passar.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Folga


Foto do blog Dream Exchange. De onde saíram algumas imagens das colagens recentes. Vale a pena visitar:
http://dream-exchange.blogspot.com

Albrecht Dürer

A gente aprende na adolescência que em Sodoma rolavam as piores perversões sexuais. Sodomita é um dos sinônimos mais preconceituososos e pejorativos para gay. Totalmente errado. Trabalhando nos últimos dias com tantas imagens de corpos, cada um mais lindo que o outro (parecidos com os anjos que se hospedaram na casa de Ló), tive vontade de recontar a história.

Ló era sobrinho de Abraão e primo de Isaque, aquele da história do guisadinho de 2 semanas atrás. Sobrinho e tio eram sócios. Prosperaram na área do agronegócio em Canaã. Mas a queda do Dízimo desequilibrou o mercado. Economistas anunciaram crise sem precedentes. Para evitar o impacto, a diretoria da A&L anunciou uma reestruturação (desmentindo os boatos sobre cortes de pessoal) com o objetivo aumentar a competitividade da empresa e prospectar mercados. Ou seja, desfazer a sociedade entre Ló e Abraão. Cada um seguiu seu rumo.

Ló mudou-se para Sodoma, que não tinha sido atingida pela crise. O nível socioeconômico da população garantia a demanda e o consequente lucro. O único problema era o perfil do consumidor.

Além de exigente, o consumidor sodomita era terrível. Ganancioso, avarento, implicante, egoísta, boca suja, sanguinário, só para listar os defeitos menos graves. Comentavam as más línguas que os sodomitas eram xenófobos extremados. E cruéis. Ló nunca tinha visto povinho tão ruim.


Abre parêntesis.

Exemplo de xenofobia: Já ouviram falar na história do leito de Procusto? Procusto era um bandido da mitologia grega. Possuía uma cama de ferro, na qual fazia deitar os hóspedes. Se o convidado era maior que a cama, Procusto cortava-lhe os pés. Se era menor, esticava-o até o pobre ficar do tamanho da cama. Os sodomitas se divertiam em imitar Procusto. De preferência com turistas.

Exemplo de crueldade: Os sodomitas odiavam os pobres. Mendigo então, nem se fala. Davam esmolas gordas ao desavisado, moedas de ouro, notas de 100, até cheques. O pobre ficava feliz acreditando ter tirado a barriga da miséria. Batia de porta em porta, de mercearia em mercearia, de lanchonete em lanchonete. Os sodomitas, sem exceção, recusavam-se a vender o que quer que seja de alimento para o miserável. Que morria de fome. Depois de morto, roubavam-lhe a esmola.

Fecha parêntesis.

Apesar disso, Ló, como eficiente administrador, estabeleceu-se. Prosperou. As 2 filhas cresciam saudáveis. Namoravam 2 sodomitas legais. Pensavam em casamento. Ló era seletivo nas amizades. Evitava frequentar a galera do mal. Pegou amor à cidade.

Um belo dia um exército chefiado por 4 reis invadiu e saqueou Sodoma. Fez de Ló, família e funcionários prisioneiros de guerra. Tio Abraão soube do sucedido. Juntou 318 soldados e resgatou Ló.
A perspectiva de negócios no período pós-guerra prometia grandes ganhos. Por isso, ao invés de recomeçar a vida em um lugar mais light, quem sabe em Gomorra ou Zoar, Ló voltou para Sodoma. Errou feio.

Aí entra Javé.

Javé, todo mundo sabe, tinha criado aquilo tudo na época do Gênesis. Já destruíra a criação uma vez no Dilúvio. Mesmo assim a criação não tinha aprendido a se comportar. Em Sodoma então, nem se fala. Gomorra não ficava atrás. Bom, pelo menos daquela vez o problema era pontual. Bastava uma chuvinha de fogo e enxofre na região e resolvia-se o problema.

Porém, por consideração ao tio Abraão e por causa da boa conduta de Ló no meio de tanta iniquidade, Javé decidiu poupá-lo e à sua família. Enviou 2 anjos até o apartamento de Ló para avisá-lo da tragédia e providenciar a retirada.

Os anjos eram muito gatos. Tipo modelo de capa de revista gls, galã de novela das 7. Ló ofereceu um jantarzinho. Convidou os amigos íntimos e os futuros genros. O pessoal do condomínio logo soube. E doidos por uma maldade, chamaram no interfone. A fim de participar da festinha. De tocar terror. Detonar geral. Quando viram os anjos, aí é que ficaram loucos. Queriam por tudo serem apresentados.

Com a confusão no hall do elevador Ló se enrolou. Tentou negociar. Ganhar tempo até surgir uma ideia. Blefou. Ofereceu as filhas aos taradões e taradonas. Dessa forma, pensava, protegeria os mensageiros de Javé. Sem resultado. Vendo que a confusão aumentava, um dos anjos interviu. Sacou um superpoder do bat-cinto e cegou a turba. Enquanto isso, o outro anjo atendeu o celular. Era o chefe Javé. Impaciente. Mandando um recado para Ló. Que ele arrumasse logo as malas se não quisesse virar churrasco com o resto do povo de Sodoma.


Os anjos deram o recado. Que Ló fugisse para as montanhas. Sob nenhuma hipótese olhassem para trás. Mas Ló era teimoso. E impetuoso. Ao invés de obecer pianinho as instruções, solicitou a Javé transferir os negócios para Zoar. Javé acreditava no tino comercial de Ló. Autorizou. E desprogramou, sine-die, a destruição de Zoar.

Então Javé passou o resto da noite se divertindo. Atirando bolas de fogo e enxofre sobre Sodoma e Gomorra. Tudo pipocava. Parecia ano-novo. Festa junina. Fase final de videogame.

Sem tempo para procurar as chaves da caminhonete, Ló e a família fugiram a pé. Só levaram o essencial: lanche para a longa caminhada, agasalhos, pois no deserto esfriava à noite e os fones de ouvido das filhas.

A fuga corria como o planejado. Exceto um detalhe. Lá pelo meio do caminho a esposa de Ló lembrou-se das joias. Largadas sobre a penteadeira. A burra se esqueceu do conselho de Javé. Pensou: uai, o que poderá acontecer se eu espiar? Virou-se na direção de Sodoma. Vislumbrou a destruição. Na mesma hora foi transformada em uma estátua de sal.

Crédito fácil, cadastro limpo, aplicações a longo prazo e energia fora do comum possibilitaram Ló restabelecer-se em Zoar. Mas faltava algo. Ele estava cansado de abrir negócio, prosperar e perder tudo. Desmotivado por não encontrar mão-de-obra especializada. Saudoso da esposa. Desiludido com o público consumidor de Zoar, tão do ruim quanto o de Sodoma. Ló pirou. À beira de uma depressão. Tomou ansiolíticos. Fez psicoterapia. Acupuntura. Hidroginásica. Musicoterapia. Nada resolvia. Um dia acordou virado num tetéu. Tinha que mudar de vida. Largou tudo. Tornou-se naturalista.  Anticapitalista convicto. Meio hippie. Fundou uma comunidade natureba com as filhas. Em uma caverna. Nas montanhas.

As filhas piraram junto com o pai. Não era para menos. Duvido alguém não pirar depois de viver tanta história hard, uma atrás da outra, em intervalo de tempo tão curto: servirem de barganha para acalmar a turba de tarados; perderem o status de filhas de empresário; perderem a mãe virada em estátua de sal; mudarem-se para uma cidade desconhecida; segurarem a barra da depressão do pai; morarem em uma caverna úmida, desconfortável, escura, isolada e de difícil acesso; e, pior, permanecerem - sabe-se lá até quando - solteiras e virgens.

A piração na comunidade durou alguns anos. Tempo suficiente para elas se acostumarem. Esquecerem-se do resto do mundo. Ao ponto de acreditar serem elas e o pai os únicos seres humanos sobre a face da terra. Tinham pouco o que fazer nos longos dias na montanha. Como diz o ditado, cabeça vazia é oficina do diabo. Encasquetaram com a ideia de perpetuar a descendência de Ló.

Um belo dia, passeando pela encosta, encontraram um cesto. Dentro, meia dúzia de garrafas de vinho. Vinho bom, boa safra, produzido pela vinícola de Noé há mais de 5 séculos, dizia no rótulo. Perfeito para por em prática a ideia que vinham matutando.

Prepararam um jantar macrobiótico. Serviram vinho. “Bebe mais, papai, afinal de contas não é todo dia que a gente acha meia dúzia de garrafas de vinho do tetravô Noé”. As filhas embriagaram Ló.

Quando Ló estava pra lá de Bagdá elas diminuíram a luz na caverna. Ligaram o som, um lounge meio oriental. Dançaram. Dança do ventre. Da espada. Da garrafa. Dos 7 véus. Com o intuito que nem precisa dizer. Bêbado como estava, A ficha de Ló não caiu. Nem se tocou que aquelas gatas eram suas próprias filhas. Quando viu, Inês era morta. Fato consumado. Ló tinha transado e engravidado as meninas.

Os filhos-netos de Ló originaram as nações dos amonitas e dos moabitas, aparentados aos povos árabes.