quinta-feira, 28 de abril de 2011

Dia a dia 427 e 428

Vincent Van Gogh - Ronda de prisioneiros
427. prisioneiros políticos aguardam a vez sob o sol de outono / caminhando em círculos no pátio congelado / cadafalso / pétalas de sangue nas cabeças dos peregrinos / ao som de adoniran cantando tiro ao álvaro / face bexiguenta do deus da guerra / tortura & varíola & sangue & areia / bebês suicidas espalham terror em estacionamento de shopping / forrobodó e furdunço no baile do sindicato dos homens-bomba / chip subcutâneo reduz até 90% da produção de adrenalina / de testosterona / tolstoi em doses homeopáticas para garantir a paz das gerações futuras / asas de anjos guerreiros cobrem nossos corações desnudados


428. caminho em espiral até a porta de vidro temperado do fim dos tempos / bolinhas de turquesa marcando o passar dos dias em shangrilá /pulando 6 casas no jogo de ludo / tempestade de areia nos cabelos da diva morta / luxo / miserê / purpurina no desfile das escolas campeãs / máquinas de bingo eletrônico mastigam dados viciados / caixas eletrônicos cospem notas de 100 dólares em agências bancárias da periferia / caçaníqueis defecam jujubas e moedas de 1 real / velhinhas atentas ao próximo clic da roleta russa / engolido pela boca escancarada da fonte dos prazeres

sábado, 23 de abril de 2011

Shakespeare 1

Esse amor, cujos olhos encontram-se eternamente vendados, deverá, mesmo sem visão, encontrar rumos para seu desejo! (...) Amor beligerante, ódio amoroso, tudo e qualquer coisa, nascidos do nada! Uma pesada leveza, uma grave vaidade, um caos deformado de formas aparentemente tão bonitas! Pluma de chumbo, fumaça brilhante, fogo gelado, saúde doentia! Um dormir sempre insone, que não é nada daquilo que é! - Esse amor sinto eu, que não sinto nenhum amor em retorno. (Romeu e Julieta, 1o. ato, cena I)

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Brasília 7

foto: Geraldo Vieira em www.henriquevieira@wordpress.com
Do vidro do carro ele olha. Espera, anseia enxergar o corpo, a pele branca do gigante-cidade deitado. O gigante-cidade que dorme à beira da água. Demora. Mas ele vê.

Dor, prazer, sentimentos que ele ainda não sabe exprimir. Pássaro grande demais, magro, desajeitado, estende as asas, o pescoço, o bico comprido no restrito da caixa torácica. Então ele canta.  O pássaro, o menino. Brado. Orgulho. Fibra. Arrojo. Palavras pomposas do hino sem sentido. O pássaro rompe. E adentra a cidade estendida por todos os ângulos da visão do menino.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Brasília 6

No meio do cerrado, o lago. Prata, cinza, sob o arco avançando, garça, asa refletida, ponte. Mãos se estendem, crescem, se revezam para alcançar a outra margem, metro a metro, bloco a bloco, concreto, madeira, aço, carne, olho projetado no além. No sempre.

Dentro. O sonho. O sono de ontem. De anteontem. Dos dias ininterruptos. Das noites a fio. O fio da serra. Lâmina. Dedos mutilados pela máquina. Sangue riscando vermelho nos veios do madeirame. Borrando o amarelo da lâmpada de 100 watts que ilumina o canteiro da obra. Tingindo a prata da água, escondida pelo escuro, abaixo. O concreto em torno. A casca de mármore branco. O outro.

Brasília 5 (CL)

Quando morri, um dia abri os olhos e era Brasília. Eu estava sozinha no mundo. Havia um táxi parado. Sem chofer. /.../ Mas reconheço esta cidade no mais fundo de meu sonho. O mais fundo de meu sonho é uma lucidez. - Pois como eu ia dizendo, Flash Gordon ... /.../ Aqui o ser orgânico não se deteriora. Petrifica-se. /.../ Em Brasília estão as crateras da Lua. - A beleza de Brasília são as suas estátuas invisíveis. 
(CL, A Descoberta do Mundo)

terça-feira, 19 de abril de 2011

Brasília 4


Luar sobre o branco dos mármores. Refletido nos espelhos de água. Nos vidros dos edifícios. Nas pupilas dilatadas dela. No ar. Que envolvia as coisas. As construções. Que transformava o próprio escuro da noite em escuro brilhante de sonho. E ela no meio do nada.

Sozinha. Punhal. Tirso. Taça. Salto. Sexo. Branco sobre os tecidos. Sobre a pele brilhante dela. Que estanca antes de desembestar. Graça. Ninfa. Parca. Pombagira.

Ela rodopia. Gargalha. Grita. Na calçada. No encontro de todas as direções. Dos pontos cardeais. De onde, de dia, os rumos saem. Para onde, de dia, tudo retorna. Não à noite. A madrugada era dela. A madrugada era ela.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Brasília 3

No meio do cerrado. Água turva, cinzenta, profunda. Artificial. Aliás, como todo o resto. Engolindo as margens. Cobrindo as árvores. Alargando as distâncias. Alastrando-se. Clepsidra marcando o subir lento do tempo.

Ele se deitou. Exausto. E ergueu, no sonho, paralelepípedos absurdos de granito, vidro e nuvens. Que flutuavam quase sem tocar o chão.

Então veio. Qualquer rumo que ele apontasse era a possibilidade. Qualquer gesto, a hipótese. Ele se apoderou dos vértices da rosa. Dois, quatro, mil braços e olhares traçando os quadrantes. Esquadrias de aço surgidas do respirar. Estirões de asfalto projetados das pontas dos dedos. Colares de lâmpadas brancas brilhantes estendidas do chão preto contra o ouro, o vermelho, o roxo, os verdes, os azuis do entardecer.

domingo, 17 de abril de 2011

últimos poeminhas petulantes (do Livro dos Cacos)

VIII

dedos ágeis
aracne trama
a malha dos dias
em sangue
e amarelo


VII

a aurora
rompe o tecido da noite
vermelha

na torre mais alta
ressona
princesa nua
que o cavaleiro vela

a princesa não sabe
os rumos que o destino costura
nem o cavaleiro
a morte nos lábios dela


IX

a aranha tece
a lua olha
a tecedura emaranhada da aranha
entre rabiscos de galho
branca brilha longe
lâmpada fluorescente
anoitece

Brasília 2

(a partir de foto de Marcel Gautherot)
Ela já o tinha visto. E escolhido. Quando ele segurou-lhe a mão, com força, na hora dos fogos, ela sentiu no toque a casca áspera dos troncos das árvores que entremeavam as construções. Dos frutos travosos que lhe brotariam das entranhas. Que povoariam aquele lugar de sonho.

Então ele apontou o céu. Onde os fogos explodiam. Esferas, rosáceas, frutos de mil cores brilhantes se dissolvendo em chuva de luz antes de tocar o chão, os prédios de curvas e retas brancas, a poeira vermelha escurecida pela noite. Ele e ela pulsavam, únicos, multiplicados no instante, na luz, no espaço infinito que se descortinava.

sábado, 16 de abril de 2011

Brasília 1


Ele desceu do caminhão e o que viu era muito além da sua compreensão. Ele soube. Tinha encontrado. Nada existia para ele a não ser as estruturas de ferro e de concreto contornadas por árvores retorcidas, erguidas sobre a poeira vermelha, riscando formas quase oníricas contra o céu vermelho. Sim, o sonho dele era ali.

Das mãos dele tudo se ergueria, tudo seria moldado. Das mãos dele e das mãos dos milhares de josés que desciam dos milhares de caminhões e se deixavam ficar ali, parados, os olhos bem abertos, os corações pulsando, adormecidos no sonho dentro do sonho dentro do sonho.

a c cesar

(...) Ai que estranheza e que lusitano torpor me atira de braços abertos sobre as ripas do cais ou do palco ou do quartinho. Quisera dividir o corpo em heterônimos - medito aqui no chão, imóvel tóxico do tempo.
(Final de uma ode, Ana Cristina César)

sexta-feira, 15 de abril de 2011

poeminha petulante 3 (do Livro dos Cacos)

I

minha boca
na tua
sol cravando dentes vadios
na pele invisível do dia

poeminhas petulantes 2 (do Livro dos Cacos)


V

sobrou o fogo de tuas vozes
o fio de teus sorrisos
o espinho de teus olhares
o pus de minhas feridas


II

o olhar fortuito que te deito
é sombra de miragem
fogo de martírio
espuma de miasma
poeira de arquivo


VI

a linha fina que te traça
risca fundo
a carne das entranhas

tua pele imaginada
aderida à minha
quadril e coxas
ânsia solitária
jorros impudentes

quinta-feira, 14 de abril de 2011

poeminhas petulantes (do Livro dos Cacos)

III

a deusa pousou em mim
olhar de pedra
porém fiei-me em tua imagem
e degelou-se o pétreo
do olhar da deusa

 
IV

fantasmas de beleza inventados
lembranças das antigas eras
desengano dos novos tempos
oásis de plantas carnívoras e água envenenada
visto silêncio em meus clamores

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Bierce 3

"O que é um sonho? Um conjunto de memórias, à solta e sem lei - a sucessão desordenada de fatos que um dia fizeram parte da consciência desperta. Uma ressurreição de mortos, misturados - novos e velhos, o justo e o injusto -, saltando de seus túmulos desfeitos, cada um 'com as roupas que usou em vida', pressionando, de forma caótica, tentando obter uma audiência com o Mestre do Festim, agarrando-se uns aos outros na confusão da corrida. Mestre? Não. Ele abdicou de sua autoridade e são eles que o dominam. Sua vontade está morta e não se ergue como os demais. Sua capacidade de julgar também se foi e, com ela, o dom de surpreender-se. Talvez sinta dor e prazer, terror e encantamento, mas assombro não sentirá. O monstruoso, o grotesco, o insólito - tudo é simples, certo e razoável. O que é cômico não diverte, o que é impossível náo espanta. Aquele que sonha é seu único e verdadeiro poeta; ele é só imaginação". (Ambroise Bierce, Visões da Noite, trad. Heloisa Seixas)

Bierce 2

"Acredito que o Dom dos Sonhos tem grande valor literário - e que se, por algum método ainda não conhecido, fosse possível apreender, fixar e por fim utilizar a fantasia impalpável neles contida, teríamos uma literatura de enorme qualidade. Uma vez em cativeiro, domesticado, esse dom poderia sem dúvida ser muito aperfeiçoado, assim como os animais que, a serviço do homem, adquirem novos poderes e capacidades. Domesticando os sonhos, poderíamos dobrar nossas horas de trabalho e as tarefas mais frutíferas seriam feitas enquanto dormíssemos. Mesmo as coisas sendo como são, a Terra dos Sonhos é uma província que paga tributos, como demonstra o 'Kubla Khan". (Ambroise Bierce, Visões da Noite, trad. Heloisa Seixas)

terça-feira, 12 de abril de 2011

Bierce

Pois há diversos tipos de morte. Em algumas, o corpo é preservado; em outras, desaparece, junto com o espírito. Geralmente isso ocorre quando o indivíduo está só (esta é a vontade de Deus) e, como náo nos é dado conhecer o fim, dizemos que o homem desapareceu, ou que foi numa longa jornada - o que é verdade. Mas, às vezes, o fato ocorre diante da vista de muitos, como provam vários testemunhos. Num determinado tipo de morte o espírito também morre e sabe-se de casos em que isso aconteceu quando o corpo ainda continuaria vivo por muitos anos. Em outras vezes, como tem sido provado, o espírito morre com o corpo, mas algum tempo depois volta a erguer-se, naquele mesmo lugar onde o corpo se decompôs. (Ambroise Bierce, do conto "Cruzando o umbral", trad. Heloísa Seixas)

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Dia a dia (411 a 615)

Cabinet des Dr. Caligari, Robert Wiene, 1920
411. flechando coraçõezinhos teen enquanto as luzes permanecem acesas / atirando em todas as direções no jardim de infância da cultura pop / rock´n roll e catimbó na mesa de jurema / oxum na cachoeira dos porões da universidade / rio de granizo no vale das tuas coxas / beijo com gosto de sorvete de baunilha / e cobertura de chocolate derretido / e casquinha crocante / blowjob e tapioca no café da manhã

432. gordinhos sequestrados / gordinhos baleados / gordinhos explodindo / cadáveres de gordinhos bicados por abutres / gordinhos cavalgados por esqueletos / gordinhos respingados de gotas de orvalho / de sangue / gordinhos molhados pela chuva de sangue / gordinhos chapinhando em poças de sangue / na trilha da floresta sobrenatural de bierce / antígona aimará / arrastando o corpo do hermano pela passarela / algumas veias da américa latina insistem em permanecer abertas

434. o buraco da revolução cultural da china era muito mais embaixo / madame mao quem diria acabou na 25 / desagradáveis personagens de leon bloy / 2 litros de silicone nos peitos / 2 nos quadris / e 3,5 nas nádegas / com direito a necrose dos tecidos / internação / tratamento vip na enfermaria da santa casa / e enterro de indigente em vala comum / rayanna shangrilá passou por aqui

531. levando no ombro o peso dos séculos / entubado pelo poema-enema / lavando a roupa suja da história recente / seguindo as pegadas do bêbado de terebentina / atravessando os territórios indômitos da escrita / coleção de escalpos no gabinete do doutor caligari / estourando bolhas de sabão com a machadinha da vovó donalda / tomar umas e outras com arp / tzara / schwitters / ray no cabaré voltaire

615. anjos de pelúcia violentados na orgia das tubaínas / moicanos de sílex aguardando a vez nos portões de sodoma / garotos de sal fazendo ponto no calçadão da avenida atlântica / diadorim dando mole para riobaldo na vereda da cabeça do veado / bundinhas de veludo dos deuses nórdicos / estalactites de carne brotam nas paredes do túnel do intestino grosso

domingo, 10 de abril de 2011

Kali

Kali foto Piyal Kundu by Wikipedia

(do Livro dos Cacos)

O roxo pesa-me nos ombros.

...

Da imagem que te vejo eu extraio cada átomo do que pode ser você. Eu te procuro em cada detalhe da cena. Atrás das máscaras. Nas flores dos arranjos. Nos parapeitos dos suicidas. Sem saber que você também é a máscara. O vaso. O vazio. Eu te construo em meu olho.

...

A noite se fecha em torno. Chove gotas de sangue na janela.

sábado, 9 de abril de 2011

Howl (Ginsberg)

Pierre et Gilles

who let themselves be fucked in the ass by saintly motorcyclists, and screamed with joy, who blew and were blown by those human seraphim, the sailors, caresses of Atlantic and Caribbean love, who balled in the morning in the evenings in rose gardens and the grass of public parks and cemeteries scattering their semen freely to whomever come who may

Dia a dia em gerúndio (1290)

hippies bárbaros rompendo as muralhas da cidadela ao amanhecer / todo mondo a su manera bailando la cumparsita / bandolero gitano / balada fúnebre para 12 pétalas da flor de lótus / amor de espinho alastrando-se pela caixa torácica / doce de leite nas trompas de falópio / minha massa encefálica esfriando em tigelinhas de sopa / serenata furtacor / colcha de retalhos / roendo os ossinhos da cauda da literatura clássica / dragão sagrado / adjetivo / advérbio / locução adverbial / ajoelhando-me diante da virgem dos sapatinhos de cristal / sob a chuva de meteoritos / na belém-brasília da teogonia / como ia dizendo roberto piva / esquiando com emília nos anéis de saturno / engolindo em seco para não chorar / recebendo mensagens psicografadas do marido morto / o além é logo ali / esperando telefonemas intergaláticos / sexo fastfood às 4 da manhã / voyeur no mictório do shopping / fodendo de pé nas ruinas de pompeia / na amurada do viaduto / ejaculando nos carros passando em baixo / caminhando de pés descalços no chão de cacos de vidro / assistindo o mundo esvair-se pelo ralo / descendo as escadas da esquizofrenia / abrindo as portas do sótão do subconsciente / percorrendo correndo os corredores de silêncio / revisitando jards macalé e sigmund freud / premindo o botão de descarga do mundo

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Dia a dia com Hesíodo (Os trabalhos e os dias)

Adquirir a miséria, mesmo que seja em abundância / é fácil; plana é a rota e perto ela reside. / Mas diante da excelência, suor puseram os deuses / Imortais, longa e íngreme é a via até ela, / áspera de início, mas depois que atinges o topo / fácil desde então é, embora difícil seja. / Homem excelente é quem por si mesmo tudo pensa, / refletindo o que então e até o fim seja melhor; / e é bom também quem ao bom conselheiro obedece; / mas quem não pensa por si nem ouve o outro / é atingido no ânimo; este, pois, é homem inútil. / Mas tu, lembrando sempre do nosso conselho, / trabalha, ó Perses, divina progênie, para que a fome / te deteste e te queira bem a coroada e veneranda / Deméter, enchendo-te de alimentos o celeiro; / pois a fome é sempre do ocioso companheira; / deuses e homens se irritam com quem ocioso / vive; na índole se parece aos zangões sem dardo, / que o esforço das abelhas, ociosamente destroem, / comendo-o; que te seja caro prudentes obras ordenar, / para que teus celeiros se encham de sustento sazonal. / Por trabalhos os homens são ricos em rebanhos e recursos / e, trabalhando, muito mais caros serão aos imortais. / O trabalho, desonra nenhuma, o ócio desonra é! / Se trabalhares para ti, logo te invejará o invejoso / porque prosperas; à riqueza glória e mérito acompanham. / Por condição és de tal forma que trabalhar é melhor, / dos bens de outrem desvia teu ânimo leviano e, / com trabalho, cuidando do teu sustento, como te exorto. / Vergonha não boa ao homem indigente acompanha. / (Vergonha que ou muito prejudica ou favorece aos homens.) / Vergonha é com penúria e audácia é com riqueza. / Bens não se furtam: dons divinos são muito melhores. / Pois, se por força, alguém toma nas mãos grande bem / Ou se com a língua pode consegui-lo, como não é raro / Acontecer, quando o proveito ilude a inteligência / Dos homens, ao respeito o desrespeito persegue. / Facilmente os deuses obscurecem a casa / do homem e por pouco tempo a prosperidade o acompanha.

(do Livro dos Cacos)


Clarice:
A obra de arte é um ato de loucura do criador. Só que germina como não-loucura para chegar à visão do mundo. A previsão desperta do sono lento da maioria dos que dormem ou da confusão dos que adivinham que alguma coisa está acontecendo ou vai acontecer. A loucura dos criadores é diferente da loucura dos que estão mentalmente doentes. Estes, entre outros motivos que desconheço, erraram no caminho da busca. São casos para médicos, enquanto os criadores se realizam com o próprio ato da loucura.

Anaïs:
Engulo as minhas próprias palavras. Rumino e rumino até que tudo se deteriore. Cada pensamento e cada impulso é mastigado até que se transforme em nada. Quero controlar todos os meus pensamentos de uma vez, mas eles fogem em todas as direções. Se o conseguisse seria capaz de capturar os espíritos mais sutis, como um cardume de pequenos peixes de água doce. Poderia revelar inocência e duplicidade, generosidade e cálculo, medo, covardia e coragem. Pretendo dizer toda a verdade porque, para isso, teria de ser capaz de escrever quatro páginas simultaneamente, quatro longas colunas simultâneas, quatro páginas resultando numa, e essa é a razão porque não escrevo nada. Teria para isso de escrever em reverso, voltar atrás constantemente para agarrar os ecos e os acordes.

Henry Miller:
Escrever, eu meditava, deve ser um ato destituído de vontade. A palavra, como a profunda corrente oceânica, tem que flutuar na superfície de seu próprio impulso. Uma criança não tem nenhuma necessidade de escrever, é inocente. Um homem escreve para destilar o veneno que acumulou devido à sua maneira falsa de vida. Está tentando recapturar sua inocência e no entanto tudo o que consegue fazer (escrevendo) é inocular no mundo o vírus de sua desilusão. Homem nenhum colocaria uma palavra no papel se tivesse a coragem de viver aquilo em que acredita. Sua inspiração é desviada na fonte. Se é um mundo de verdade, beleza e mágica que deseja criar, por que põe milhões de palavras entre si e a realidade daquele mundo? Por que retarda a ação - a não ser que, como outros homens, o que realmente deseje seja o poder, a fama, o sucesso? "Os livros são ações humanas na morte", disse Balzac. No entanto, tendo percebido a verdade, ele deliberadamente entregou o anjo ao demônio que o possuiu.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Dia a dia (0187 a 0195)


scienceblogs.com.br
187. tráfico de ópio na época dos faraós / bola voadora dispara raios no céu da índia / vanusa babilônia chefia rede de aliciamento e prostituição

191. pelo 7o dia consecutivo / exterminadores raides bombardeiam praga / dresden / saltzburg / bavária romênia / danúbio / volga / líbia / iraque / hiroshima / afeganistão / nuvens negras de ódio e rancor sobre a palestina / nuvem marrom de dejetos industriais sobre a ásia / nuvem prateada de bombardeiros sobre os civis / ilha de garrafas pet / e sacos de supermercado / no meio do oceano atlântico / terremoto / maremoto / tsunami / chuva ácida / contaminação radioativa / arruda / sal grosso / passe de preto velho / banho de rosa branca no mundo

195. shakespeare / soneto 138 / quando a amada jura que é feita de verdade / eu acredito / sabendo que ela mente / o melhor hábito do amor / é simular confiança / nelson sargento / nosso amor é tão bonito / ela finge que me ama / e eu finjo que acredito / samba do crioulo doido sob a sombra de agripino de paula / a horda dos espíritos malditos / mautner / macalé / glauco mattoso / arnaldo batista / wally salomão / roberto piva / guerra na Colômbia levanta pó dos séculos

Dia a dia (0123)


news.bbc.co.uk
123. saparmurat niyazov / presidente vitalício do turcomenistão / até a sua morte / em 2006 / construiu gigantesco lago artificial / no deserto / cercou o lago por floresta de ciprestes / em cujo centro / ergueu um palácio de gelo / com pista de esqui / e pirâmide de 40 metros de altura / e estátua em ouro / 6 vezes maior que ele mesmo / em praça da capital / com base giratória / acompanhando o movimento do sol / decretou a divisão da vida em 12 ciclos / estendeu a adolescência até os 25 anos / o início da velhice aos 85 / dos 25 aos 37 a juventude / a idade madura dos 37 aos 49 / a fase correspondente à idade dele / 62 anos / à época do decreto / passou a ser chamada / ciclo da inspiração / mudou o nome dos meses / para nomes de parentes / da mãe / dele próprio / e de heróis populares

Arca dos inéditos de Fernando Pessoa

(Google)

terça-feira, 5 de abril de 2011

Sísifo (do Livro dos Cacos)


Depois tudo é cansaço neste mundo subjetivado,
Tudo é esforço neste mundo onde se querem coisas,
Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas,
Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente.
 

...

Mestre de ódio e luz que sou eu mesmo. Mestre de lâminas afiadas. De estilhaços. De aplausos fáceis.

...

Diálogo exaustivo de mim comigo mesmo. 

...

Especular o espaço entre um poro e outro na pele das coisas. Criar até destruir. 

...

Talvez ainda não seja. Mas pulsa. Estátua de mármore e lava de vulcão.

...

Percorro uma espiral cônica interminável. Quando chego ao topo, caio em um fosso que me leva novamente à base. Prendo a respiração na queda. Para flutuar. Antes de ser atropelado pela motocicleta de Apolo.  

...

A essência da escrita à água rala das palavras faladas. Ser uma fortaleza muda. Iluminada com lâmpadas de mercúrio. Higienizada com clorofórmio. 

...

Eu me dilacerarei. Me libertarei da verdade. Talvez deixar escorrer a emoção. Talvez revelar segredos. Talvez vestir de cores os pensamentos. Talvez provocar revoluções.

...

O que eu disse por último foi com gosto de mentira. Saboreia. Quando a verdade assomar, parecerá insípida.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Dia a dia (0079 a 0091)

Foto de Fernando Salgueiro, no blog http://br.olhares.com
79. surpreendida pela erupção do vesúvio / pompeia / foi afogada por torrentes de lava / cinza / fragmentos sólidos / gases tóxicos / na manhã de 24 de agosto do ano 79dC / em 2 dias / mais de 2 mil pessoas / cerca de 10% dos habitantes / morreram no mar de fogo / gaius plinius caecilius secundus / conhecido pela galera da literatura por plínio, o jovem / sobrinho e colega de trabalho de plínio, o velho / que morreu tentando socorrer os moradores / relatou / em carta ao historiador tácito / os detalhes da desgraça

80. pompeia /ficou soterrada / até o século xvi / quando operários / que construíam um aqueduto / encontraram as primeiras ruínas / cadáveres petrificados/ ladrões sobre o muro prestes a assaltar / mãe amamentado o respectivo bebê / cão preso na corrente / jovens fugitivos / parados no tempo / ruas / praças / templos / termas públicas / tavernas / quitandas / residências / estátuas de mármore / e bronze / afrescos / objetos variados / relíquias

81. segundo eugenia ricotti / historiadora romana contemporânea / os pompeianos acordavam cedo / comiam pão / carne / queijo / ao meio dia uma refeição leve / às quatro da tarde / depois de uma sauninha nas termas públicas / muito bem frequentadas / ceava-se / fibra / carboidratos / azeitonas / avelãs / nozes / tâmaras / frutas secas / lentilha / ervilha / grão-de-bico / cevada / trigo / polenta / sopas / ensopados / cozidos / grelhados / assados / frutos do mar e da terra / sorvete feito de neve do jardim / ou das montanhas / vinho / diluído em água fria ou quente

91. faltam 10 minutos para as lavas do vulcão alcançarem o décimo-segundo andar / e começarem a queimar meus pés

domingo, 3 de abril de 2011

(do Livro dos Cacos)

Escrever é como flechar a caça no escuro. Eu queria usar a palavra com a precisão do braço do atirador de facas.

...

Escrever por fragmentos: os fragmentos são então pedras sobre o contorno do círculo: espalho-me à roda: todo o meu pequeno universo em migalhas; no centro, o quê? (RB por RB)

...

Escrever é mumificar o vir a ser. A palavra é vício de quem, de uma forma ou outra, adia. (CL?)

...

Anaïs Nin

(anônimo grego)

Eu não devo me alegrar e nem mesmo beber vinho
Tenho de ficar sozinho numa montanha de mármore
Deitar de cara pro chão e chorar lágrimas negras
Tornar-me um lago de vidro, uma fonte de água fria

Meredith Monk


I still have my hands
I still have my mind
I still have my money
I still have my telephone
I still have my memories
I still have my alergies
I still have my philosophie
I still have my beautiful gold ring

sábado, 2 de abril de 2011

Dia a dia (2077 a 2222)

77.  objetos primitivos dotados de enorme carga emocional / poder espiritual / fragmentos de ossos dos santos / de animais extintos / penas de aves / espinhas de peixes das profundezas

93. espelho convexo do espírito / materialização do inefável / palavras-código / mantras tecnológicos / profecias / curandeiros / xamãs

109. cavalos de ogum galopam no vermelho da tarde / reclusão dos guias / cachaça e café amargo frio / incenso / espirais de fumaça evolam do templo / pétalas / caixão de mogno / com alças acobreadas / e cravos de bronze

135. ebó / nome bordado / costurado em coração de boi / enterrado na encruzilhada / na porta do cemitério / à meia-noite / Pape Satàn, pape Satàn aleppe.

189. virgem azul / envolta em nuvens metálicas / incandescentes / no trânsito da manhã / deuses pagãos em todas as esquinas

198. chovia suor / do deus que flutuava / acima da minha cabeça

222. vocabulário onomatopaico da fé / e microfones / e câmaras de vídeo / e digitais / e palanques nos teatros / e cinemas desativados / e multidão que ulula

Mishima

Mishima, via www.vivipara.blogspot.com

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Dia a dia (2101)

santo budista da ordem do chapéu preto / nossa senhora dos pretos / cores mágicas dos espíritos elevados / virgem branca do pântano / bruma que vem do além / espíritos de luz na carnavália / anoitece quando o exu trancarrua estende a capa /zé do caixão na balaustrada do palácio da marquesa de santos / homem-aranha na torre da paulista / mulher-maravilha lança escudo de invisibilidade sobre a 25 de março / broquéis de cruz-e-souza / amor de capa e espada / desfile de deuses e deusas no palanque oficial do clube dos quarentões bem sucedidos / high society quatrocentão no debut da barbie / 4 mil fitas vermelhas na cerração / amanhã eu continuo / hoje eu continuo / ontem eu continuo / desconectado do universo / engastar as palavras como mosaico / subindo pelas escadas de serviço da literatura contemporânea

Dia a dia 2725 (sebastião /mishima / anaïs)


telefonema do garoto no cio às 3 da manhã / interrompendo o beijo do príncipe encantado do sonho / vontade continuar dormindo / atravessando o adro vestida de branco / sobre lajes de sepulturas / ordenhando a vaca do espírito / mussorgski no rádio ao meio-dia / leite / manteiga / qualhada / iogurte / aquário de peixes de cristal / ácaros e rock’n roll nos lençóis de hefestos / filhotes de cérbero choromingando às 6 da manhã / mulato assanhado / sapateando na tampa do caixão da noiva virgem / trancarrua incorporado no garoto de programa / lírio branco acompanhando a curva dos cabelos viris / lírio branco para maiores / barulho do mar no peito do amado