quinta-feira, 31 de março de 2011

(do Livro dos Cacos)


Falo. Falácias. Fiado em fragmentos. No espólio dos pensamentos incompreendidos. Na busca ridícula do perfeito. Do íntegro. Do êxtase artificial. Representações pálidas. 

...

A beleza aconteceu longe de olhares curiosos. Sem palavras que a esvaziassem. Nada mais. Tudo. Para ser em seguida fulminada pelo raio de Zeus.

...
Pedra. Cigarro. Listagem. Computador. Bicicleta. Roupa. Janela. Asfalto. Nadador. Microscópio. Voz. Lavadeira. Drywall. Telefone. Ária. Dormente. Balsa. Buda. Veludo. Death. A emoção estética engabela-nos com suas teias.

...

Filosofia de pórticos. A criação continua. 

dia a dia (2024)

galinha d'angola cacareja de madrugada no telhado / doce de casca de laranja / jornal de ontem / de anteontem / da semana passada / guerra no deserto / e desastres naturais no oriente / música cigana no som do carro / roberto carlos a 200 km por hora / projeto para viveiro de tartarugas / projeto para a captura da galinha d'angola no telhado / projeto para decoração do quarto do neto / projeto de trabalho para a o próximo milênio / marulho oculto pela névoa / à procura da beleza desde a manhã de sábado / camada translúcida de manteiga  / escrevendo aos trancos / tocado por manivela / dor nas costas / vista cansada / pau mole / saco cheio

Lilith June 5, 2010 - Melati Suryodarmo - butterdance.mov

quarta-feira, 30 de março de 2011

(do Livro dos Cacos)

À tarde
Alamedas de ciprestes sob a chuva. Ares dos pés alados. A chuva / o sangue da tarde escorrem na pele de granito dos faunos, das musas esvaecentes / dançantes. Motocicletas estacionadas sob os ciprestes.

À noite:
Pensamentos evolam nos vapores do vinho. Borbulham no molho agridoce. Entre pimentões. e pedaços de carne de porco mal passada. Palavras pardas. À guisa dos brotos de bambu. 

(...)

Talhar os flancos do peixe ainda vivo. Mergulhar em gordura fervente. Peixe nadando nos líquidos enzimáticos do estômago.

Hockney

Portrait of an Artist (Pool with two figures) David Hockney, 1972
1
em volta do aero willys rabo de peixe / parado na porta da mercearia / da cidade de interior / rapazes desocupados / rapazes louros / rapazes morenos / vestidos com jaquetas de couro pretas / pulôveres gola alta em cor pastel / calças jeans justas / sapatos pretos / e topetes duros de brilhantina / lustrosos como a lataria do carro / em busca de trocado fácil / de convite para um banho de piscina / com direito a martini com azeitona / e quem sabe um ou dois pernoites / sobre os travesseiros / na cama do empresário / jornalista / fazendeiro bonachão

2
vestido de terno de linho branco / chapéu panamá / na poltrona de vime / à mesa posta do café da manhã / na varanda / o fazendeiro / empresário / jornalista bonachão / se deleita / com os mergulhos / splash / alegria das vozes / corpos brilhando / espargindo água / gotas de água / entre os pêlos molhados / dourados / louros / escuros / corpos emoldurados / pela água / pelo céu / azuis / pela claridade / volumes dos calções de banho / preenchendo de desejo / a manhã

terça-feira, 29 de março de 2011

Historinha desagradavel antiga

uma menina / de 7 anos / escapou do cativeiro / roendo a fita adesiva /que lhe fechava a boca / arrombou a porta do sótão / em que a mantinham presa / quebrou a vidraça / gritou a 2 crianças que jogavam bola / na rua / que avisaram a polícia / isso tudo com os sequestradores dentro da casa / o sequestro tinha sido planejado / para obter o dinheiro do seguro / do tio / da menina de 7 anos / assassinado anteriormente / pelos próprios sequestradores / a menina de 7 anos / só chorou no hospital / quando lhe retiravam restos da fita / que lhe colavam os cabelos

segunda-feira, 28 de março de 2011

(do Livro dos Cacos)

William-Adolphe Bouguereau - La Nuit (1883)

Apolo enfrenta Nyx ao pôr-do-sol.
Dionsisos bêbado arrota augúrios.

Dia-a-dia (2008)

lavas do vulcão / despencam do abismo / dentro do mar / no havaí / lavas do vulcão / incendeiam quilômetros de floresta / na áfrica / homem-bomba explode / em refeitório de universidade / hortênsias / restos de comida / fragmentos de corpos / misturados ao pó de concreto / na bola de fogo que se fez / deus-ígneo manifestado / sangue / sirenes / ambulâncias / horror pelos auto-falantes / sal grosso sal grosso no mundo

domingo, 27 de março de 2011

Avalovara - Osman Lins

Acha sempre a caça? A pesca? Com sua rede escura, sua flecha clara, seu anzol de fogo, seu duro arcabuz, descobre sempre o animal no vôo, na sombra, no abismo?

Dia a dia (915, 1015 e 1105)

1015. chafurdando no chiqueiro das convicções pessoais / dormitando enquanto o apocalipse se instaura / garimpar verbetes semipreciosos na enciclopédia da maga patalógika / enfrentar o bicho de 7 cabeças das suposições / guilhotina heptalaminada / empalado no nicho lateral da catedral do medo / distribuindo desodorante bucal no baile de 15 anos da filha de equidna / buscando sentidos no lusco-fusco do plausível / salve salve agrippino de paula

915. repositório de supositórios tamanho extra-large / digerir as 7 bolas de gude encrustadas na parede interna do intestino grosso / ossos moídos nos recônditos das catacumbas / guisado de miúdos da leitoa de 2 focinhos / a porca de murça quem diria era porco / banda do zé pretinho no cumpleaños de castro do cadaval / seguindo as pegadas de édipo pelos caminhos pedregosos da seara da culpa / ó senhor não nos deixeis iludir pelas falácias do ego

1105. botinhas brancas & minissaia de couro & tiara com estrelinhas de plástico da louraça vestida para matar / índia teus cabelos nos ombros caídos negros como a noite que não tem luar / nega do cabelo duro qual é o pente que te penteia / mulata assanhada que passa fazendo pirraça cadê meu kanekalon? / balela da mistura de raças obumbrando a cerúlea esfera dos estudos da drag-queen secundarista

sábado, 26 de março de 2011

(do Livro dos Cacos)

Ela, deitada, pensa o mesmo que eu. Sucumbe à melancolia da tarde. Faltam palavras para descrever sua descida. A música acaba. Silêncio. Então ela fala. Eu me levanto sem acender a luz. Inchado de álcool e solidão. Aproximo-me dela. Ela não resiste. Como uma morta. O escuro e meu corpo iluminados pela fosforescência dela. Pela chama azul dos olhos dela. Desisto de falar sobre a morte, gorda, rosada, a nos espreitar no lusco-fusco.

(do Livro dos Cacos)

Chão: colchão azul-marinho estendido no meio da sala / sobre tapete de sisal / cinzeiros cheios / almofadas amarelas empilhadas / livros, revistas / 2 peles de carneiro vermelhas. Parede A, à esquerda: porta de entrada / 3 pilares cilíndricos de concreto com 40 cm de altura perpendiculares à parede / livros empilhados nos intervalos entre os pilares. Parede B: potes de cerâmica ordenados por tamanho decrescente sobre uma caixa de madeira branca / penas de pavão em vaso longo / no ângulo de junção entre as paredes A e B. Parede C: pinturas quadradas / 2 cocares de penas azuis, vermelhas e amarelas dependurados / cortina de algodão / rede vermelha.
Parede D: eu encostado.

Essência trina (do Livro dos Cacos)

O espaço que encerra um indivíduo está sempre em relação direta àquele que o ocupa. A luz o delimita, centelha; o ar o preenche corporalmente, sopro; a palavra o reveste, signo.

Atlântida (Atlantis) Ronnie Von

Dia-a-dia (2002)

dionísio / baco / sileno só dizia a verdade quando embriagado

...

o personagem do filme escreve porque não gosta da realidade / tenta criar outra / onde possa se encaixar / beckett desfaz esse sentido romântico da escrita / reduz a realidade à essência / esvaziando o ser humano / soterrando-o / imobilizando-o em sua verdadeira natureza / no vazio da existência

...

rimbaud passava férias no inferno / aposentou-se por lá / dante excursionou do inferno ao paraíso / com escala no purgatório / dostoievski invernou na casa dos mortos / eça registrou a inauguração do canal de suez / borroughs / ginsberg / kerouak cruzaram a américa / seguindo a trilha de whitman / xavier de maistre viajou em torno do próprio quarto / clarice na cozinha / área de serviço / e dependências de empregada

...

marilyn desempenhou o papel de loura burra / durante toda a vida / mesmo longe dos refletores / e das câmaras de filmagem

quinta-feira, 24 de março de 2011

(do Livro dos Cacos)

Na caverna escura, antro do monstro, aterrorizada ela espera. As garras do monstro lanhando-lhe os flancos.

Os olhos dela se acostumaram. Enxergam com grande esforço. Ela percebe pelos outros sentidos. Tênue do cristal do copo. Bordados dourados. Luz vacilante da vela. Morceguear de passos. Insetos nas paredes de veludo. Rosa murcha sobre a penteadeira. Peixe na redoma de mercúrio líquido.

Quando ele surge a música dessintoniza-se. Zumbidos. Silvos. ZN. Ela toca-lhe os pêlos de escova da crina. As vísceras expostas. O vapor negro dos pulmões. Os líquidos mornos de seus dentros. A luz cor-de-carne que emana do seu corpo. Dele ela sente tudo. Insônia.

Clima de pré-catástrofe suspenso. Medo em todos os sentidos.

Era sábado

era sábado / nublado / abafado / acordamos tarde / e tomamos café / e ficamos observando o tempo / penetrando nele / respirando a secura do ar / a modorra da manhã / parecia que ia chover / as frutas implodiam de maduras / sensação de clarice / depois das baratas / depois de ouvir rádio na madrugada / para que as palavras, as horas, as músicas, as notícias fossem lastro / para nos prender ao mundo / os fatos concretos, os fatos objetivos, a realidade viva / contra o inefável / a especialidade dela era capturar a essência das coisas / extrair a imaterialidade do real / transformá-la em uma sequência de palavras / que soam como mantras / que resgatam de dentro do ser o ponto de contato com o divino / dizer isso é mais óbvio que falar que água não tem cor

terça-feira, 22 de março de 2011

Mário

Ele sofria em silêncio. Ou dormia. Nós pouco nos falávamos. Eu me ocupava com a dedicação, os cuidados, o travesseiro, a inclinação da cama, os curativos nas escoriações. Para escapar de olhá-lho nos olhos. De pronunciar palavras que revelassem o medo. Ou o alívio de saber que seriam os últimos momentos juntos. Era como uma raiva, contida, indistinta, raiva da doença, do inevitável. Como se ele fosse culpado. Eu estava exausto. Ele percebeu, sim. Porém já se desligava. Nada mais lhe importava que não fosse a própria dor. Que os remédios não aplacavam. Ele se continha. Mesmo nos últimos momentos não queria incomodar. Nada havia a fazer. A não ser esperar. Esperar o dia nascer. Esperar a vinda do médico. Esperar a enfermeira encontrar a veia. Esperar a Morte levantar-se da cabeceira dele. (Pausa). Enquanto o câncer implacável o corroía por dentro. Nas horas intermináveis de vigília. No calor do quarto. Entre as visitas do médico, das enfermeiras. No intervalo entre uma gota e outra pingando no tubo de soro. Como um sonâmbulo eu transcrevia, riscava, alterava, reescrevia frases impregnadas de agonia. E de Morte. Morte sempre. Morte vestida de vida. De paixão. De sensualidade. Antecipação da descida ao Hades? Um videoclipe interminável de música acelerada e sobreposição vertiginosa de imagens, palavras e cores, legendas desnecessárias no rodapé da tela. Simultaneidade irônica. O texto expandia-se. Na proporção em que as células devastadoras devoravam-no. Desmaterializavam-no. De dentro para fora. (Pausa). Eu queria ler para ele o que era nosso. (Pausa). Você?

segunda-feira, 21 de março de 2011

(do Livro dos Cacos)

Eu me queria cachoeira. Entrelaçada às pedras. Lançando espasmos esparsos. Tocada pelos galhos das margens.

(...)

A paixão que nos une é interminável.

Flor vermelha mergulhada em vinho.

Fogo. Morte. Impossível a galopar. Crina arreganhada ao vento.

Mão afrouxando a resistência dos músculos. Boca derramando na pele saliva ácida. Ccascos arrancando pedaços de carne.

domingo, 20 de março de 2011

(do Livro dos Cacos)

horas corroídas pelo vácuo. cidades soterradas.

quadrilátero estático. cadeira no deserto. cavalo cego.

pisar o próximo passo na direção do irrevogável.

recolher-se ao próprio desespero.

às 5 horas da manhã, cheirando a sono e sonhos azedos, cantarola enquanto penteia os cabelos. às 9, ainda coberta pelos resquícios da noite, mergulha inteira noa claridade das cores das coisas da segunda-feira protegida por óculos escuros. às 11, chora ao cortar cebolas, anéis de emoções súbitas misturadas aos tomates, cozinhando no molho amarelo dentro da panela preta. à tarde, cabelo molhado, diante do espelho, celebra a proximidade do escuro e pinta-se para o jantar.

sábado, 19 de março de 2011

2 amigos

Era uma vez Bernardo e Álvaro. Amigos desde o jardim de infância. Unha e carne. Se Bernardo sofresse, Álvaro parava tudo que estivesse fazendo para consolá-lo. Se Bernardo ligasse embriagado às 3 da manhã, Álvaro ouvia as lamúrias e aconselhava. Se Bernardo pulasse em um buraco, Álvaro pulava junto. Só para não deixar o amigo sozinho.

Há séculos atrás, quando mal saíram da adolescência, tinha rolado um clima. Em Uberlândia. Bêbados, de madrugada, na praça, Álvaro declarou-se. Tentou beijar Bernardo. Bernardo repudiou. Riam quando a história era contada nas rodas de amigos.

Mas a amizade não era assim tão equilibrada. Bernardo era desligado. Um pouquinho egoísta. Não tinha a paciência de Álvaro. Nem o cuidado, a dedicação. Primeiro era ele mesmo. Depois o resto. Para Bernardo, a visita quinzenal de Álvaro era suficiente. Uma espécie de benevolência.

Era geralmente às sextas-feiras. Geralmente antes de saírem para a balada. Geralmente Álvaro levava pizza, esfirras, chocolate, salgadinhos, energético e cigarros.

Bernardo gostava. Porque detestava sair sozinho. Porque não tinha carro. Porque táxi era caro.

Então Bernardo arranjou um namorado. Quando Álvaro soube, era fato consumado. Bernardo ia morar com o cara. Álvaro tentou aconselhar. Bernardo deveria repensar. Mudar-se para a casa de um desconhecido. Perder a privacidade. Logo Bernardo, que tinha dificuldade de compartilhar.

Bernardo morreu de rir. Depois irritou-se. Sabia se cuidar. Que Álvaro não metesse o bedelho onde não tinha sido chamado. 

Álvaro ficou arrasado pela possibilidade de rompimento. Resistindo em admitir os ciúmes.

Com o namoro,Bernardo sumiu do mapa. Falavam-se cada vez menos. Mais por insistência de Álvaro. Bernardo não precisava mais de Álvaro para a balada. Para o lanche da sexta-feira. Para os fins de semana em Ubatuba. 


Álvaro morria de saudade. Mas entendia. Qualquer dia a gente te convida, Bernardo falava. Mas nunca convidava.

Como esqueceu-se de convidar Álvaro para a festa do aniversário de 30 anos.

Foi a gota d’água. Álvaro magoou-se. Até chorou. Desde crianças, sempre comemoravam juntos os aniversários. Ainda pensou em ir à boate. Encontrar Bernardo por acaso. Fingir surpresa. Mas Álvaro não era falso.

Por maior que fosse a amizade Álvaro não perdoou o amigo. Adoeceu por conta do descaso.

Deu um tempo. Pelo jeito Bernardo não sentiu falta, pois também não procurou Álvaro. O tempo acabou por cicatrizar a ferida. Álvaro seguiu a vida. Mancando, mas seguiu. Problema de Bernardo não valorizar a amizade.

Alguns meses depois o celular tocou. Álvaro sobressaltou-se. Mesmo sem olhar no visor, pressentiu. Era Bernardo. Hesitou em atender. Porque o coração tinha disparado. Porque não sabia o que dizer. Porque a mágoa sufocada tinha aflorado de novo.

Colocou no silencioso até o celular parar de tocar. Até recuperar o fôlego. A taquicardia. Então ligou de volta. Mentiu. Oi, tudo bem? Eu estava no banho. O que você manda?

O texto era banal demais para quem tinha emagrecido 10 quilos, só de sofrimento. Para quem conhecia o interlocutor há mais de 20 anos. Mas era o máximo que Álvaro podia fazer. Disfarçar a emoção. A alegria de falar de novo com o amigo.

Nem precisou perguntar. O namoro tinha acabado. Bernardo estava com vontade de sair. A primeira vez depois da separação. Convidou Álvaro. Ele aceitou na hora. Quer que eu leve uma pizza?

Saíram. Não foi a mesma coisa. A mesma sintonia. Álvaro achou Bernardo mudado. Distante. Provavelmente a recíproca era verdadeira. Bernardo desapareceu no meio da boate. Deixou Álvaro sozinho. Encostado perto da porta do banheiro. Bernardo só apareceu na hora de ir embora. Para não perder a carona.

Álvaro esperou Bernardo ligar durante a semana. Dar notícia, falar da festa, agradecer a carona. Nada. Preocupou-se. Teria acontecido algo? Claro que não, senão o outro teria pedido ajuda. Esperaria.

Não deu outra. Bernardo só ligou 10 dias depois. Sem explicação sobre o sumiço. Convidando Álvaro para sair de novo. Bernardo estava morrendo de vontade de comer empadão de frango. Álvaro podia comprar naquela padaria do Paraíso. Forrariam o estômago antes da balada e matavam a saudade dos tempos de Uberlândia.

Álvaro topou. Também deu vontade de comer empadão de frango. De conversar borracha até o dia amanhecer. Coitado do Bernardo, tão deprimido com a separação. Necessitando colo.

Em seguida lembrou-se dos últimos acontecimentos. Da última saída. Do desprezo de Bernardo. De cada momento, de cada situação em que tinha sido relegado a segundo, terceiro plano. De cada furo, cada bolo levado. Era péssimo

Então houve uma reviravolta. Não podia ir. Não. Não queria ir. Pela primeira vez Álvaro disse não para Bernardo. Porque Bernardo era egoísta. Interesseiro. Porque Bernardo se aproveitava da amizade. Porque Bernardo nunca pensava no que ele sentia. Por que não ia ele mesmo à torteria comprar o empadão?

Da mesma forma que desligou o celular, deveria se desligar de Bernardo.

Bernardo tentou ligar de volta. Caiu na caixa postal. Álvaro chorou encostado na janela.

Depois lavou o rosto. Vestiu a roupa mais bonita. Guardou o portarretratos com a foto dos dois na parte de cima do guarda-roupa. Passou na torteria 24 horas e comeu uma fatia do empadão de frango com guaraná. Em homenagem a amizade. Que poderia tomar outro rumo, a partir daquela crise. Ou então morrer de vez. Dependia dos 2.

Lição do triângulo (do Livro dos Cacos)

Presas da esfinge ávida. A beleza sobrepuja a maldade do monstro.

Górgona. Vítimas petrificadas.

As telhas despregam-se do madeirame. Desmoronam as muralhas dos castelos. Os ventos assomam. Fúrias. Titãs. Tempestades. Que venha o exército de minotauros. Que venha a horda das estriges nuas. Arranca-se o gozo das entranhas.

Estou dividido ao meio. Tu também. A metade que prevalece em mim é oposta à tua. Minha metade lança tentáculos em todas as direções. A tua se desvia deles. Minha metade te engole. A tua me vomita.

Desobstrui o cimento dos ouvidos. Arranca o gesso dos músculos. Derrete o gelo dos nervos. Funde o chumbo das palavras.

Olhos de vidro. Pálpebras de aço.

Bebi todo o inseticida que havia na casa.

Cheguei ao fundo do precipício e o meu corpo não se despedaçou nas pedras. Sairei de ti. Incontinente.

Travamos um combate interminável. Solidão de meus mesmos.

quinta-feira, 17 de março de 2011

O Dia (do Livro dos Cacos)

Manhã ensolarada de batismo. Tudo translúcido. Como um grito de alegria prolongando-se no ar. Soldados, escriturários, camelôs, crianças, transeuntes banhados de vento, calor e claridade. Envoltos pela plenitude do dia. Caminho radiante. A luz aquece o ar e abole o perigo e o medo.

(...)

Fachos de luz do dia atravessam as frestas da persiana e iluminam a poeira da noite em suspensão. Os sons vindos da rua, filtrados pelo vidro, soam como poemas despertados pelo sol. Protegido, da janela panorâmica eu assisto.

Riba

Todo mundo me conhece por Riba. Eu bebia. Demais. Bebida quente: Dreher, rum, Montilla. Só bebida destilada. Quando eu bebia eu ficava doido. Batia na Diana. Nos meninos. Deus me perdoe. Já levantei a mão até pra mãe. Brigava na rua. Virava e mexia, final de semana, caía no mundo. Saía de manhã, só chegava no outro dia, dois dias depois, se chegasse. Beber em casa? nada a ver. Meu negócio era a rua. Bar, sinuca, farra. Só bagaceira. Só má companhia. Se passasse um mês no mesmo serviço era muito. Eu era muito ignorante. Alguém punha a mão nos meus olhos. Para eu não enxergar o rumo certo. O santo tirou isso de mim. Antes de vir prá cá eu já era do santo. Mais ou menos. A gente tinha uma vizinha. A dona Cleusa. Dona Cleusa era vidente. Ela vivia dizendo pra minha mãe que eu era do santo. Que o santo tava me pedindo. Que eu precisava desenvolver. Que se eu não desenvolvesse eu ia dar muito trabalho. Dona Cleusa virava com Exu. Bebia muito. Fumava charuto. Diz-que até usava droga. Por isso minha mãe não quis. Depois eu não me interessei. Mas o santo cobrava. Um dia eu tinha sido mandado embora do serviço. Tinha bebido a grana da feira. Fazia 3 dias que não ia em casa. O santo me bateu. Me emporcalhou na lama. Me fez beber água de poça d’água. Bater a cabeça no meio-fio até desmaiar. O santo me jogou na sarjeta. Não lembro por quanto tempo. Daí o caboclo veio. Falou comigo. Conversou demais. Aconselhou. Disse que eu tinha um trancarrua colado em mim. Me obcecando. Era trabalho da dona Cleusa. Eu tinha que mudar de vida. O caboclo mandou eu procurar na feira a garrafada tal. Que bebesse de manhã e de noite. Que eu procurasse o terreiro tal. Eu fui. Eu fiquei admirado. O terreiro era igualzinho como o caboclo tinha falado. O pai-de-santo jogou búzio. Para ver qual era o santo. Me recolheu. Raspou. Rodante não. As mesmas coisas que o rodante tem eu também tive. Não, eu não viro no santo. Agora é a cabeça dele antes da minha. Agora eu vou caminhar. Meu pai? Não, eu não posso revelar. Só se ele autorizar.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Fabinho

Contar um segredo? Tá bom. Quando eu crescer eu quero ser médico. Para curar mamãe da artrite. Receitar remédio de pressão alta. Para ouvir o coração da Rosa naquele aparelho, como é mesmo o nome? Papai queria que eu fosse jogador de futebol. Se eu fosse bom, mas muito bom, eu tirava eles da lama. Eu não gosto de futebol. Eu gosto de jogar queimada. É. Meu primo diz que queimada é jogo de mariquinha. Eu não sou mariquinha não. Eu vou me casar e ter 4 filhos. Se eu for jogador eu quero ser goleiro. Sabia que goleiro é o único jogador do time que usa camisa de manga comprida? Eu queria ganhar uma luva de goleiro. Roupa de médico também é bonita. Branquinha. O sapato, a meia, o cinto, o jaleco. Jaleco é aquela roupa tipo um casaco que o médico usa por cima da roupa. Será que a cueca do médico também é branca? Se eu for médico a Rosa vai ter um trabalhão pra lavar minha roupa todo dia. Lavar roupa branca dá trabalho. Tem que deixar de molho. Hem? Ah, tá bom, eu vou contar o segredo sim. Uma coisa que eu nunca contei para ninguém. Eu queria ser artista. Artista famoso. É. De novela. Eu gosto de novela. Eu só não vejo a novela das 9. Porque papai não deixa. Papai gosta de assistir jogo de futebol. Eu acho chato. Artista tem que ter boa memória. Para decorar o papel. Minha memória não é boa. Ah, eu sei uma poesia. É assim: Não vai dar tempo? Tá, outra hora. Acho que eu não vou ser artista por que eu não consigo me lembrar direito. Artista tem que beijar na boca. Eu sei que é de mentirinha, a Rosa que me disse, mas eu acho que eu vou ter vergonha. Eu não sei beijar ainda. Mas eu aprendo. Meu primo disse que já beijou na boca. Ele tem 8. Ele disse que beijou a Rosa. Eu duvido. Porque a Rosa é grande. É adulta. A Rosa um dia me contou que queria ser modelo. Meu primo? Quer ser jogador. Ele adora futebol. Eu não gosto. Acho que eu já falei. Um dia eu tava jogando bola com meu primo. Eu era o goleiro e ele era o Ronaldinho Gaúcho. Ele chutou a bola tão forte que eu não consegui agarrar. Acertou na minha cabeça. Eu desmaiei. Fui internado no hospital. Depois eu não me lembro. Nadinha. Acho que depois do hospital eu vim direto pra cá.

(do Livro dos Cacos)

Raios de sol atravessam a cúpula e cintilam nas gotas d’água entre as folhagens.

A espessura da umidade engole os sons.

Basta um ofegar mais forte e brotam no ar mariposas, morcegos, colibris.

Sob os pés a serpente líquida alimenta-se dos barrancos.

Cabeleiras verde-escuras ondulam na correnteza. Insetos carregados de ovos emergem.

Pedras-lâminas escorregadias afiam-se na carne.

Vestes pútridas do caos-origem. Vísceras da mãe nojenta.

Estarei irreconhecível. Como a água o será quando desembocar no oceano.

A transubstanciação me inundará de água salgada e areia.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Costa

Como? Se eu prefiro praia ou montanha? Ah, só pode ser uma pegadinha! A pessoa passa a vida inteira se preparando, estudando, lendo arte, filosofia, literatura, psicologia, religião e cai uma pergunta dessa? Bem que me avisaram. A essa altura do campeonato... Pode me dar 30 segundos? Para eu reorganizar as ideias. Não? Realmente, por essa eu não esperava. Bem, para uma pergunta imbecil, uma resposta idiota. Vamos lá. Bem, há poucos dias, antes da convocação, eu recebi um e-mail. Sabe aquele amigo que te manda e-mail todo dia? sobre câncer provocado por adoçante. Sobre as 100 vantagens de se beber água. Aquele filminho que demora horas para abrir e quando abre trava seu computador. Aqueles e-mails que a gente deleta sem nem ler. Bem, por sorte esse eu não deletei. Vai me servir agora. Realmente o e-mail é perfeito para a ocasião. Bem, vou resumir porque se não não dá tempo. É sobre um cara aposentado. O cara morava na serra. É, na montanha. Estava empolgado para morar na praia. Por que na serra – na montanha – chovia, tinha nebilina, deslizamento e coisa-e-tal. A senhora conhece algum aposentado que não queira morar na praia? Bem, começa com o cara vendendo a casa da serra. Certo, da montanha. Bem, o cara procura apartamento na praia. Fecha negócio, apartamento com sacada, de frente pro mar. O cara se muda. Pleno verão, sol, calor, mulherada na areia, agenda diária de aposentado, caminhada, sesta, cervejinha, buraco, barco inflável. Com o passar dos dias o cara se enturma com a vizinhança, a maioria também de aposentados. Terminando o verão, os problemas do cara começam. Primeiro manda envidraçar a varanda por causa da ventania. O cara não consegue pôr o barco na água, por causa do mau-tempo. Por falta do que fazer, o cara passa a frequentar o bingo. O inverno piora, o cara para de caminhar. Ou seja, mais tempo no boteco. A barriga só crescendo. A mulher do cara doida para voltar, com medo de tsunami. Bem, lá pra novembro o cara já virou alcoólatra. Quase se divorcia. Vende o apartamento para outro aposentado, e voltando para a serra - para a montanha -, de onde nunca deveria ter saído. Eu, quando me aposentar? A senhora está brincando comigo?

domingo, 13 de março de 2011

(do Livro dos Cacos)

Guinchos dos peixes-ratos na água estagnada.

Escuro e úmido. Preso na teia que reduz meus movimentos. Meus impulsos a.

Casulo. Qual mariposa hodienda surgirá de mim?

Que brotem em torno árvores frondosas. Que cresça o mato. Que o mar engula. Que desabem os dilúvios. Que chova fogo e meteoros.

Pensamento em labirintos. Perseu sem espada. Barbantes de Ariadne.

Como esculpir a sensação. Desejo do vivo. Víscera. O agora necessita de sangue. De carne pulsando.

Ossos. Alabastro. Granito. Magma.

Paraísos inominados.

sábado, 12 de março de 2011

Recife

Olinda

Carminha

Posso mandar um recado? Pro Tato. Tá gravando? Oi, Tato, sou eu! Te amo, viu? Você tá cansado de saber, eu já te disse mil vezes, Tato, você nem imagina o quanto eu te amo. Eu te amei desde o primeiro dia. É, aquele dia que você me pediu o brinde, lembra? Claro que lembra. O brinde era só pra quem tinha completado 500 pontos, você nem tinha direito, você nem cartela tinha mas eu te dei o brinde assim mesmo, sempre sobra, muita gente nem sabe que ganhou, muita gente nem vem procurar. Foi o seu jeitinho de menino pidão que me ganhou, lembra? eu com aquela roupinha ridícula de holandesa no meio do shopping. Tato, você era tudo de bom. Ah, Tato, se eu pudesse te dava o stand todo. Mas fiquei te enrolando, fazendo doce só pra você ficar mais. Pois é, Tato, bem na hora em que eu te entreguei a sacola eu sabia que você é que ia ser o meu brinde. Tato, eu sei que você não liga pra data, mas você sabe que dia é hoje? hoje a gente completa 3 meses juntos. Pena que você não vai estar aqui. Tato, eu nem ia dizer isso, mas me disseram que se eu me arrepender eu posso pedir pra eles tirarem na hora da edição. Me desculpe, Tato. É, me desculpe pela cena de ontem. Desculpa, meu amor. Eu acredito, sim, em você. Eu tava nervosa. Caramba, é meio surreal você ganhar um pacote pra passar o carnaval no Rio com tudo pago, você não acha? Eu fiquei com ciúme, sabia? Inveja também. Eu tinha comprado champanhe e cerveja pra comemorar. Mas graças a deus passou. Eu entendo, Tato, você é homem, tem mais é que aprontar! Pode beijar na boca à vontade, tá? Só beijar, viu? É, eu sei que é carnaval. Levou camisinha? É, meu amor, você eu deixo. Eu tenho certeza que você me ama, por isso eu deixo. Só te peço uma coisa, Tato, se cuida, tá? Acabou o tempo, Tato, beijão pra você, tou morrendo de saudade. Gravou?

(do Livro dos Cacos)

A dos olhos de gelo. A dos laços de fita. A dos cabelos soltos. A do grande nariz de máscara. A dos cílios postiços. A do esmalte nas unhas. A dos dentes arreganhados. A da longa língua em lambadas. A das asas pequenas. A dos artificios. A das borboletas de nanquim e vidro. Eu rio. Elevo-me. Penetro. Mordo. Ela me adentra. Eu me entrego. Soam as sirenes. No vermelho dos meus veludos.

quinta-feira, 10 de março de 2011

(do Livro dos Cacos)

A véspera

Vento e frio na motocicleta. A paisagem pontilhada de luzes. Éguas céleres galopam nos espaços entre os edifícios. Estrelas de purpurina atravessam as nuvens. Lua e insetos em todos os buracos. Relâmpagos na linha do horizonte.

O filologista

Flores murchas sobre a mesa. Aranha que tece nelas. Mariposas em volta da lâmpada. Trumpete e piano sonolentos. Misturados ao barulho da rua vindo da janela. Veludo do escuro. O aviso no rádio: nós continuamos vivos.

Apocalipse

Pisca os olhos. Depois levanta-se e caminha até os cigarros. Os barulhos de máquina velha. Espera o sono carregando sua nuvem de serpentes. Enquanto os discos voadores sobrevoam o céu.

Releitura para purgação dos excessos carnavalescos

"Como São Marcos e Marcelino que (...) foram presos e atados a um tronco e tiveram os pés atravessados com pregos agudos; (...) os algozes lhes picaram as ilhargas com lanças; (...) Santo Etério, que foi degolado depois de aturar fogo e outros suplícios. E a paixão de São Félix, condenado à morte depois da tortura do cavalete (...) E os santos mártires Hipácio e André, que foram degolados mas antes tiveram suas barbas untadas com pez e queimadas, e seu couro cabeludo arrancado. E São Ponciano, da Sardenha, morto a cacetadas (...) E o bem-aventurado Calepódio, que foi degolado e teve seu corpo arrastado pela cidade (...) Os santos Nereu e Aquiles, que sofreram duríssimos açoites, passaram pelo suplício do cavalete e da fogueira (...) finalmente degolados. E mais Santa Corona que (...) foi dilacerada entre duas árvores (...) e por distensão dos membros. E São Simplício, traspassado por uma lança (...). E o bem-aventurado Isidoro que foi atirado dentro de um poço (...) Santa Dímpina, virgem e mártir, que foi degolada por ordem do próprio pai (...) E também Santa Restituta, colocada num barquinho cheio de pez e estopa, ao qual atearam fogo (...) São Dióscuro, a quem mandaram retirar as unhas e queimar as ilhargas com tochas acesas e que foi afinal queimado com lâminas candentes, antes de morrer. Ou o suplício de Santa Alexandra, afundada num charco, com uma pedra no pescoço. Ou Santa Ciríaca, atrozmente zurzida por açoites e lançada numa fogueira (...) E Santa Basila (...) trespassada por uma espada. E Santo Áquila, rasgado com pentes de ferro (...) São Basilisco, a quem lançaram botins de ferro cravejados de pontas candentes e por fim decapitaram e jogaram num rio. E Santa Cointa (...) arrastada com cordas pela cidade, até que seu corpo ficou todo em pedaços. (...) São Tarcísio que, ainda criança, (...) agredido com paus e pedras até morrer. (...) São Sebastião (...) amarrado e flechado por seus próprios soldados e afinal espancado até morrer. (...) E tantos Santos Mártires anônimos, como aqueles da Capadócia, que sucumbiram com as pernas quebradas (...) e outros da Mesopotâmia, suspensos com os pés para cima e a cabeça para baixo, asfixiados com fumaça e queimados em fogo lento." João Silvério Trevisan, Em Nome do Desejo.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Blue quando tudo está irremediavelmente morto (do Livro dos Cacos)

3. O travesti

Eu estava cansada. O lugar fedia a mofo.
Na carótida. Com a gilete de raspar as pernas. Estrebuchou como um porco.  Depois eu me sentei. Nua. Acendi um cigarro. Os dedos sujos de sangue. Risquei com a lâmina a pele do peito dele. Coração trespassado. As iniciais dos nossos nomes merejando em vermelho. Apaguei o cigarro no umbigo dele. Cheiro de carne queimada.
Lavei as mãos. Retoquei o contorno preto dos olhos. As pálpebras cor-de-pavão. Eu me agachei e urinei. Como uma puta. Poça de sangue e mijo em volta dele. Apaguei a luz. O rádio ligado. Gal.  Cantamos juntas. Ressuscita-me! Tranquei a porta. Desci as escadas. O inferno naquela noite nunca mais.

Gotas de sabedoria 2

"Devemos prezar acima de tudo nossa compreensão aleatória da morte e o amor retumbante que nos aproxima. Abaixo a coruja empalhada no andar de cima e a estátua de Hermes no pilar da escada! É preciso pôr no prego o colar de rubis, jogar fora o convite do Palácio de Buckingham, pisotear o borrifador de perfume de Murano e os pratos cantoneses. Rejeitar tudo que agride e afronta o nosso intento, no sono ou na vigília. As senhas de passagem serão o desapego e a coragem. Só elas nos levarão além da sentinela armada e da fronteira montanhosa". John Cheever, do conto "A Cômoda", traduzido por Daniel Galera.

Gotas de sabedoria 1

"Algumas pessoas preferem tratar suas paixões mais como uma exibição do que como uma aventura. Em vez de se apaixonar ou de fazer amigos, dão a impressão de escolher homens, mulheres, crianças e cães para o elenco de um drama envolvente que se comprometeram a produzir no instante de seu nascimento. Isso se faz notar especialmente em quem trabalha com um elenco limitado por um baixo orçamento emocional. As atuações grosseiras chamam a nossa atenção para a peça. O papel de menina ingênua foi dado a uma mulher velha demais. O mesmo vale para a protagonista. O cão é da raça errada, os móveis não combinam entre si, o figurino é surrado e, quando o café é servido, não sai nada do bule. Mas o drama se desenrola com o mesmo terror e piedade que se espera das produções mais magníficas".  John Cheever, do conto "A Cômoda", traduzido por Daniel Galera.

O Álex

Pra mim só cai pergunta difícil. Inteligência ou bom senso? Veja bem. Cada qual tem seu momento. Ok. Vamos por partes. Primeiro: você já deve ter percebido. Eu a-do-ro falar. Segundo: aconteceu de verdade. Terceiro: eu de-tes-to deixar as coisas inacabadas. Quarto: eu me esforçarei ao máximo para resumir sem cortar. Senão perde a graça, né? Quinto: só nesse preâmbulo já se passou 1 minuto. Bom. Conheci o Álex na internet. Superlegal. Cada foto mais linda que a outra. 20 e poucos. Pouco mais novo que eu. Versátil. Solteiro. A fim de conhecer pessoas legais para amizade ou quem sabe algo mais. A única coisa que pegava era a corrente de prata. E a separação recente. Marcamos no café. Só faltou puxar a cadeira para eu me sentar. E o principal: resolvido financeiramente. Porque me dá nos nervos essa história de ligação a cobrar. De faltar crédito para responder mensagem. De pagar a conta sozinho. Etcétera. O Álex era  cara metade. O par do vaso. O cravo para minha rosa. O genro que mamãe pediu a deus. Inteligência e bom senso nessa hora? Passaram longe. Você há de convir. Amor à primeira vista hoje? Nem em telenovela. Pois eu me apaixonei pelo Álex. Não da primeira vez. Foi lá pelo segundo. No terceiro encontro. Bem. Qualquer biba, por mais imbecil que seja, tem discernimento pra saber que um cara separado há só 2 meses e com perfil em site de relacionamento está a fim de aprontar. Eu crente que o Álex também tinha se apaixonado por mim! Até reza para ficar com o Álex eu decorei. Tem aquele ditado. Deus escreve torto por linhas retas. Pois é. Mesmo com a reza forte o Álex não era para ser meu. A Rosa, que deus a tenha em bom lugar, tinha razão. Bicha burra nasce morta. Rosa? depois eu digo. Pois o idiota aqui ligava. Mandava mensagem melosa. Toda hora. Do trabalho. Da rua. Do engarrafamento. Me sentindo tipo adolescente. O Álex dava corda. Respondia a todas. Educadérrimo. Foi a partir daquela que eu dizia, vê se pode! - que eu queria ele para sempre. O Álex tirou o corpo fora. Na certa pensou: Que biba ansiosa! Primeiro foi no fim-de-semana. A gente tinha ficado junto na sexta. Bebido todas. Deixei o Álex em casa às 6 da manhã. A gente combinou de se ver mais tarde. Claro que ele não ligou. Você há de convir que, por mais cega e embotada que a biba esteja, o sexto sentido dela não desliga. Percebi. Tarde, mas pecebi. Tinha algo errado. O Álex não ligou no sábado. A biba aqui então usou a cabeça. Inteligência? Talvez. Melhor bom senso. Ou senso de ridículo. Liguei só no domingo à tarde. E aí, Álex, ainda de ressaca? porque eu já disse, a gente tinha bebido demais. O Álex justificou o sumiço: a mãe tinha chegado de Goiânia. O quê? Já passou 1 minuto além do tempo? Dá para imaginar o resto, né? Se eu for selecionado eu conto o resto. Pode?

quinta-feira, 3 de março de 2011

Blue quando tudo está irremediavelmente morto (do Livro dos Cacos)

2. O coiote

As costas e os flancos iluminados pelo clarão da lua. O inconfessável. Uivo.

Estalido. Corujas revoam nos galhos. Morcegos esvoaçam. Em seguida silêncio. Ele se aproxima. Pegadas sobre o chão de argila e gravetos.

Espreita a presa. Descuido contra a atenção. Contra dentes e garras e fome e sede e ódio afiados.

Vento. O bote. Preciso. O coração a galope. Pescoço estraçalhado.

O sangue na laje gelada coagulado pela noite. Lavado pelo orvalho da madrugada.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Blue quando tudo está irremediavelmente morto (do Livro dos Cacos)

1. O vampiro

Será na hora lodosa em que a morte reina. Depois da música explodindo os tímpanos. Tempestade entre relâmpagos. Semáforos cravando o breu de amarelo/amarelo/amarelo.

O morcego suga-suga vagueia pelas saliências. Derrama o vampiroso de si pelos desvãos de sombra mais densa das marquises. Olha em infravermelho. Acetileno.

Em desprezo e ânsia: Carne, sangue e ossos humanos pulsando. Poderia beber o sangue do garoto mais bonito encostado no parapeito. Do travesti bêbado. Do mendigo embrulhado no cobertor. Dos ratos do bueiro.

Em desespero e terror: O coração do garoto aos saltos. Gritos recobertos pela camada impermeável do escuro. Morcegos rasgados ao meio pela lâmina dos gritos. Depois silêncio. Frio e fúnebre. O corpo inerte nos braços. Olhos esbugalhados. A mão direita sobre o ventre. Lambe o sangue. O suor gelado. Misturado com sereno. Hálito roxo. Estrelas. Lua. Insetos.

Em morte: 11 horas da manhã. Repuxa a capa. A força maligna fenece. A claridade do dia contorna os limites da sombra.

Amadeu

... infelizmente ... a memória só os pedaços ...  pior que o corpo ...  o corpo não é nada minha filha ... um homem na minha idade precisa de desafios ... senão é só invólucro ... palavras cruzadas ... ler? ... vou te confessar uma coisa minha filha ... enxergar? eu leio até bula de remédio ... o problema é a concentração ... nenhuma ... idade para ser duas vezes seu avô ... a vida é sobreviver ao momento ... superar a adversidade ... existe adversidade maior que a velhice? ... a morte ... a depauperação dos sentidos ... o desaparecimento ... bem que eu queria ... mas não consigo acreditar ... finitude minha filha ... finitude ... não vê? ... descobriram até o fim do universo! ... na minha idade ... sim ... há pouco tempo eu entendi ... você acredita? ... viver quase um século para compreender uma frase boba? ... um homem é o que ele é por dentro ... não com essas palavras minha filha ... filósofo era papai ... 9 filhos vivos ... hoje em dia é diferente ... imagina um homem criar sozinho 9 filhos? ... criar e formar ... até freira ... e eu? ... papai morreu feliz ... filhos ... netos ... com 95! ... a casa cheia ... Dadinha ... Ção ... Memé ... Madrinha ... e Graça ... eu era o caçula minha filha ... Madrinha porque foi ela quem me criou ... papai deu duro ... Memé ... coitadinha ... tão avoada ...  papai sofreu com Memé ... porque eu estou aqui? ... vou te dizer uma coisa minha filha ... eu já fiz de tudo um pouco ... filhos? ... nenhum ... não ... eu nunca quis me casar ... a vida ... por incrível que pareça ... pelo menos hoje ... é ... na minha idade ... não devo satisfações a ninguém ... solidão? ... a do homem minha filha ... a do ser humano ... eu não te falei do desafio? ... eu conheço o meu lugar minha filha ... o mundo é dos jovens ... força de vontade não me falta ... isso aqui? ... ninharia ... não entenda mal ... ninharia em comparação com o que eu já vivi ... sou um homem vivido minha filha ... e não um saco de batatas ... papai ... você não vê? ... acabou meu tempo? ... e eu não falei nenhuma palavra sobre a integridade? ... ê cabeça ... posso tirar outra ficha?